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ENTREVISTA

Vera Vianna Baptista, autora de A longa viagem perto de casa.

Roberto Custódio/JL

Houve um apagamento do Paraná espanhol?

No Paraná provincial, a presença de espanhóis se deu principalmente por manifestações isoladas e espontâneas. Eram independentes, deixavam as famílias na Espanha e não se reuniam em colônias como as demais etnias. Por esse motivo, as autoridades brasileiras consideravam a imigração hispânica sem relevância. Raramente os espanhóis são citados, embora sua presença tenha sido constante desde o Paraná Colonial.

Seu livro se converte numa crônica de época?

Creio que a evolução de um grupo familiar, que por décadas sucessivas vive num mesmo território, é parte do universo coletivo – algo que pertence à sociedade. Portanto, desvendar a trajetória de estirpes antigas, com suas particularidades, é uma forma de preservar e resgatar a memória social e coletiva. Os costumes de cada época emergem dos relatos e da iconografia com toda graça, solenidade e estranhamento que sempre causam mudanças nos códigos sociais.

Qual o Capão Raso de seu imaginário?

Era o bairro de parte de minha família. O primeiro campo de aviação de Curitiba ocupava um terreno da família Biscaia no Capão Raso. Tanto ali, como em outros bairros, dentro da névoa que embaçava a manhã, ouvia-se o som alegre dos cincerros e guizos de animais passando pelas ruas da cidade. Eram os italianos levando lenha, milhos, em suas carrocinhas toscas, e uma tábua coberta com um pelego servindo de banco. O frio e a neblina cerrada faziam pensar que se estava na Europa, pois se escutava o linguajar confuso dos imigrantes.

A longa viagem... é seu Cem anos de solidão?

A verdade é que fui tão feliz na minha juventude que queria fazer alguma coisa para demonstrar minha gratidão. É realmente um privilégio, aos 83 anos, poder rememorar as aventuras vividas na infância e poder inseri-las no contexto maior da história de nossa terra. Aliás, gostaria de lembrar as palavras de Selma Baptista na generosa apresentação do livro: "Aqui a memória cumpre, mais uma vez, sua tarefa de nos situar no fato mais simples e mais profundo da história de todas as gentes: que devemos fazer para ser salvos? Qual o sentido da nossa existência? De onde viemos? Para onde vamos? Para casa."

A assistente social e pesquisadora Vera Maria Biscaia Vianna Baptista, 83 anos, vive em Primeiro de Maio, Norte do Paraná, desde 1949. Mas em suas andanças por Curitiba – cidade onde nasceu e cresceu – experimenta uma sensação inimaginável à grande maioria: não cruza duas ou três quadras sem encontrar um de seus antepassados. Basta-lhe olhar para a placa das ruas.Nomes como José Loureiro, Cândido Lopes ou Monsenhor Celso fazem direta ou indiretamente parte da biografia da autora, o que torna ainda mais saboroso seu último livro – A longa viagem perto de casa: Euskaldunak, o homem de Biscaia, calhamaço ilustrado, modelo álbum, com 256 páginas, lançado pela Editora Mirabilia e com projeto gráfico de Guilherme Zamoner. Ao todo, a obra consumiu nove anos de trabalho.

Detalhe: apesar desses e de outros ilustres lhe serem tão próximos, passeiam pelos capítulos como coadjuvantes: o livro tem como epicentro a figura do pai – no caso o pai de Vera, o anônimo José Júlio Fernandes Biscaia, em torno de quem vão surgindo "tantos nomes de ruas", mas também Cotinhas e Yayás dignas das melhores ficções.

Complexos

Não se trata, em absoluto, de um daqueles textos escritos para purgar complexos familiares mal resolvidos. Embora Vera não esconda sua admiração por José Júlio – um modesto bancário paranaense da primeira metade do século passado –, desvia de todas as ciladas da paixão filial. "Papai fazia contabilidade para fora. Dava duro. Era um homem bom e honestíssimo. Me marcou muito. Queria contar a história dele. Era só isso", amarra.

Em vez de usar truques da hagiografia ou da mitologia para apresentar José Júlio, Vera lança mão de outra tática, muito mais ilustrativa: parte sempre do universal para o particular. O livro se inicia com um vasto histórico sobre a presença espanhola no Paraná, oferecendo um material para ser usado, por exemplo, nas escolas.

É no meio do cipoal de navegações e imigrações d’além-mar que se encontram os Biscaia, família basca cujas raízes no Sul remontam ao século 18, nas figuras de José de Monatega e de seu bisneto, Manuel Rodrigues Biscaia. A tática funciona. O leitor fica com a deliciosa sensação de ter ganhado asas. Do alto vê um panorama. Em segundos, aterrissa nos quintais da Rua Pedro Ivo, 457, onde Vera foi criada. O sobrado da infância, por sinal, ainda está ali, em meio a uma das "repúblicas da Síria e da China" formadas no Centro Velho. Ela nunca mais esteve lá. Nem quer – prefere as lembranças.

Genealogia

É quando trata dos primeiros Biscaia que Vera dá mostras da maior de suas habilidades de memorialista – lidar com as genealogias sem provocar a confusão e o bocejo eterno. Para tratar de longos troncos familiares, dezenas de filhos, descasamentos, compadrios e descuidos dos cartórios é preciso ter uma soma de qualidades: paciência de Jó, atenção de coruja e vasta cultura, à moda de Santiago, o mordomo erudito, e genealogista, documentarizado por João Moreira Salles, em filme homônimo.

"Contornei o desafio com método e organização. Primeiro trabalhei com uma única família, depois com outras, enfileiradas. Muitas vezes me embaralhei e deixei tudo de lado para esfriar a cabeça", diz.

Em seu trabalho anterior, Curitibanos dos Campos Gerais (2002), a autora fez exercício semelhante. Queria recuperar o tronco dos Klüppel e dos Baptista – dos quais descendia seu marido, Milton Vianna Baptista, morto este ano. Para cumprir a tarefa, acabou por recriar a formação do Segundo Planalto.

A longa viagem perto de casa, no entanto, leva vantagem em relação ao trabalho anterior. Ao tratar de pessoas com quem conviveu na mocidade – a exemplo da cativante Maria dos Anjos Fernandes Biscaia, a vó Anjo, moradora de uma chácara no Capão Raso, do tipo que espera no portão – Vera torna o novo livro mais "caliente".

As pequenas histórias de parentesco – algumas delas recolhidas com uma prima, Maria da Luz Fernandes Perin, com quem não se comunicava havia 60 anos – são bem temperadas. E cá entre nós, revelam uma Curitiba distante do cheiro de naftalina, caras amarradas e roupas ditadas por freiras.

Mulheres

Eleonora, a mãe de Vera, era mulher solar, de espírito liberal para a época. O próprio clã Biscaia não fugia à regra. "Os parentes se reuniam todos os dias para jogar e conversar", lembra. A galeria de personagens dessa roda é tão incrível que só falta Vera colecionar sugestões dos leitores sobre qual delas devia virar filme.

É o caso da belíssima Bernar­­dina Biscaia. Casada jovem, enviuvou. Casou-se com o cunhado viúvo. Enviuvou de novo, cabendo-lhe cuidar de filhos e dos filhos. Ao se envolver com o espiritismo, foi dada como doida na cidade do início do século 20. Não chega a ser uma mártir da sociedade dos costumes, mas merecia figurar nos anais dos estudos de gênero no Paraná. "Ela foi podada pela educação rígida da época. Pensava para frente", diz Vera, sobre a parenta morta aos 51 anos, totalmente enlouquecida.

Outra proeza do livro são os detalhes de vestimenta, mobiliário, relacionamentos e até hábitos de higiene. A descrição dos litúrgicos banhos semanais, seguidos de mãos de álcool para o corpo não esfriar, é de deixar pasmos tarimbados historiadores.

Vida longa

Octogenária, ela tem as vantagens da vida longa: viu saias encurtarem e encompridarem. Mulheres deixaram as cozinhas e se enfurnaram em firmas – é o caso da própria Vera: menina de sociedade, mandou-se jovem para os sertões paranaenses, ao lado do marido. Juntos ajudaram Primeiro de Maio a passar de vila a cidade. "Uma existência longa oferece novas perspectivas. Com o tempo, as pequenas vivências, os momentos cotidianos e banais passam a fazer todo sentido e vão se mostrando em toda sua grandeza", comenta.

Tão boas quanto as pequenas histórias de A longa viagem... são as fotos em sépia, traficadas dos álbuns de família. E não deixam mentir: mostram meninos vestidos com batas e a hierarquia dentro dos clãs, com seus vetustos senhores entronados. Os retratos também exibem meninas a­­­­zougues de roupas floridas, desafiando a sisudez do tempo passado. Uma delas, claro, é Vera, que "vivió para contarlo".

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