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Curitiba – Quem assistiu ao vivo às cenas de depredação do Congresso feita por mais de 500 integrantes do MLST (Movimento pela Libertação dos Sem-terra), na última terça-feira, teve dificuldades para conter o sentimento de indignação. O quebra-quebra deixou 26 feridos, causou um prejuízo de R$ 150 mil, sem falar na paralisação dos trabalhos dos parlamentares naquele dia. Na visão de Renato Perissinotto, professor de Ciência Política da Universidade Federal do Paraná, é preciso não ficar na superficialidade do ato e tirar lições para o fortalecimento da democracia brasileira.

A invasão do Congresso Nacional por integrantes do MLST foi um ato antidemocrático?

Sem dúvida, um ataque à democracia. Mas é preciso entender outros contextos antes de analisar esse fato. É uma agressão à democracia porque usa violência, não segue as regras previstas para encaminhar uma determinada reivindicação às instituições, machuca pessoas. Fere as regras do jogo. Não há dúvida em relação a isso. Mas se a análise terminar na classificação do fato como baderna e ponto final, não se poderá entender porque aquilo aconteceu.

O que deve ser levado em consideração?

É preciso chamar a atenção para pelo menos três pontos que explicam o caso. O primeiro fator é a característica do movimento. Quem são esses indivíduos? Quem são as lideranças do movimento? São pessoas que foram socializadas politicamente na esquerda mais radical, que entendem que a ação violenta é um componente importante da ação política; que muitas vezes até privilegiam a ação violenta em detrimento da ação institucional em alguns momentos; que não aderem muito à idéia de democracia representativa. Eles não se intimidam com a idéia de que determinadas normas devem ser respeitadas. Uma segunda dimensão que eu acho importante é o fato do PT ter se apartado muito do seu projeto político. Quando o PT passou a se dedicar mais ao projeto estritamente eleitoral, o partido, ou melhor, a direção do partido – porque essa distinção é importante – se afastou dos movimentos sociais.

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Não apenas isso, que é o resultado de uma estratégia eleitoral. Agora, quando o partido decide, "nós precisamos ganhar o poder de estado por meio das eleições nas prefeituras, nos estados e na União", chega a conclusão que tem de, evidentemente, moderar o projeto político, ter um discurso mais tranqüilo, conservador e, portanto, se afastar dos movimentos sociais, que trazem consigo sempre uma quantidade de radicalismo. Quem são os movimentos sociais? São trabalhadores, as minorias, pessoas que não estão muito dispostas a esperar que seus problemas seculares sejam resolvidos daqui a um século. Esses grupos empurram o partido mais para a esquerda. Quando o partido se distanciou da esquerda, o PT que até então era um canal de vocalização dos interesses dessas pessoas, se fecha para essas reivindicações.

O governo Lula ficou aquém das reformas esperadas pelos movimentos sociais?

Com certeza. O projeto do PT era mais radical, não apenas do ponto de vista econômico, mas do ponto de vista republicano, de discussão dos problemas sérios da democracia brasileira. Erra quem pensa todos têm a liberdade democrática de veicular suas reivindicações nas instituições da democracia no Brasil. O PT podia moderar esses movimentos, institucionalizá-los dentro da política oficial. Quando um partido, criado por essas pessoas ao longo de 20 anos, não é suficiente para canalizar essas reivindicações, esses grupos decidem agir diretamente. Repito, não se trata de justificar a invasão. Essa é apenas mais uma dimensão que ajuda a entender o fato.

E o terceiro aspecto?

Um terceiro fator é o chamado "efeito demonstração". Se você diz para a população que deputados ladrões podem ser absolvidos, que o policial corrupto não é preso, que a polícia pode sair por aí matando gente sem sofrer nenhuma conseqüência, que fulano pode matar a namorada e não ser preso, por que não se pode invadir o Congresso? E é isso que é uma das coisas mais chocantes que têm no Brasil. Por que a histeria com que a mídia reagiu a esse fato? Está obviamente ligada ao fato de ser um movimento social radical de esquerda que tem na reforma agrária uma reivindicação muito forte. Se esquecem que outros atentados muito mais fortes à democracia brasileira são cotidianamente cometidos.

O que aconteceu ali foi uma invasão violenta de um prédio, e a democracia não é o prédio do Congresso, é muito mais do que isso. Condenável, sem dúvida nenhuma, mas existem tantos outros atos, muito mais condenáveis no dia-a-dia da política brasileira e o máximo que se diz sobre isso é classificar de forma resignada que tudo acabou em pizza. Na verdade era para se dar um escândalo. O fato de você liberar, absolver determinadas pessoas que roubam o dinheiro público descaradamente e que tem certamente conseqüências muito maiores para a vida da população brasileira do que aquela invasão, não recebe críticas tão contundentes.

É uma espécie de seleção?

Exatamente. O índice de indignação é seletivo. As pessoas ficam extremamente indignadas com a invasão do Congresso Nacional do movimento radical de esquerda, mas agem na maioria das vezes de maneira resignada em relação a aquilo que usualmente ocorre na política nacional. Para falar só da política e não de todos os outros atos de violência, como o fato de você ter uma polícia que comete abusos sistemáticos na periferia, algo muito mais grave para a democracia brasileira do que essa invasão.

Outro lado interessante é analisar o seguinte: com que facilidade movimentos e lideranças oriundas dos movimentos sinceramente populares têm acesso ao Congresso? Porque nós podemos ter quase certeza de que representantes de instituições financeiras, de interesses rurais, dos grandes proprietários, de lobistas, empresários, de setores da indústria trafegam muito tranqüilamente dentro da Casa. Será que é com essa mesma facilidade que os grupos mais de esquerda, com reivindicações radicais têm acesso ao Congresso? É claro que não. É verdade, não se pode sair por aí quebrando as coisas, rompendo as regras, mas, ao mesmo tempo, nós temos de nos perguntar em que medida as regras são suficientemente inclusivas a ponto de dar a chance de outros grupos manifestarem seus problemas dentro do Congresso.

Muito se tem discutido sobre o dinheiro público recebido por esses movimentos e também em relação ao fato de que alguns manifestantes alegaram que não sabiam os reais motivos pelos quais foram levados a Brasília. Essas pessoas são usadas como massa de manobra política?

Talvez o fato de ser gente muito simples tenha indignado mais a população em relação a essa invasão. Isso se explica pela característica dos líderes do movimento, forjados nas fileiras da esquerda tradicional. Funciona assim: os líderes mandam e a base aceita essas decisões. Pode se ter idéia de que aquela população estava sendo razoavelmente instrumentalizada, mas eu não sei até que ponto isso de fato ocorre. Recebem dinheiro como tantas ONGs que existem por aí e não se sabe, na maioria das vezes, o que essas instituições fazem com o dinheiro. O problema não está em receber dinheiro do governo, mas em tomar atitudes que de fato contrariam os procedimentos. Por vezes, os políticos usam esses movimentos, mas também são usados por eles.

O quebra-quebra prejudica o projeto do Lula de reeleição?

É difícil avaliar. O PT teve uma decisão muito rápida, expulsou o Maranhão no dia seguinte.

Isso foi uma decisão eleitoreira?

Certamente. Uma satisfação à classe média conservadora e histérica do Brasil. A expulsão do Bruno Maranhão é muito curiosa, porque foi quase imediata, logo após o fato. E, por outro lado, nenhum dos parlamentares petistas acusado de mensalão foi expulso do partido, nenhum. Ou seja, o partido tolera a bandidagem, a ladroeira, que pode produzir efeitos políticos muito mais perversos e tem uma atitude diferente com outros dirigentes radicais. Certamente não vejo que o líder do MLST tenha cometido um mal maior do que aquela mulher que dançou no Congresso.

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