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Para quem passa pela BR-277, em direção às praias do Paraná, a informação de que há uma antiqüíssima trilha de pedra cortando a Serra do Mar mais parece um delírio de montanhistas. Diante dessa informação, a impressão que fica é quase sempre a mesma – caso exista, a tal estrada deve ter sido engolida pelo barro e pela mata, já que quatro séculos – tempo em que se fala dela – não são quatro dias. Até pouco tempo, esse raciocínio, ainda que falso, tinha lá sua razão de ser.

A tal trilha – batizada com tantos nomes que muitos vêm aí a prova de sua inexistência – era um quebra-cabeça que só esportistas e ecologistas pareciam saber decifrar. Conhecida oficialmente como Caminho do Itupava – numa referência a um dos rios com a qual cruza – tinha trechos inteiros descansando em paz debaixo da terra e outros tantos devastados pelas muitas quedas d’água da região. Ligar os pedaços era tarefa para uma minoria de iniciados em Serra do Mar, o que talvez explique a demora do poder público em reconhecer seu potencial turístico e arqueológico.

Há cerca de um ano, graças a um convênio firmado entre o governo do estado do Paraná e o banco alemão de investimentos KFW, o Itupava finalmente virou uma prioridade e começou a ganhar existência também para quem passa pela 277 e nunca subiu um morro de mais de três metros de altura – que dirá um de 1.100 metros. Com recursos na casa de R$ 960 mil, o mato foi roçado, sete pontes passaram a ligar áreas alagadas – incluindo duas no modelo pênsil, com 22 metros cada –, e pinguelas de madeira deram acesso a pontos perigosos. O resultado é inacreditável para quem jurava que a Estrada do Mar – um dos inúmeros títulos do Itupava – não passava de meia dúzia de degraus de granito pendurados numa ribanceira.

As obras estão concluídas e até o final deste mês a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e o setor do Patrimônio da Secretaria de Estado da Cultura devem liberar a área, interditada para visitação deste outubro do ano passado. Há promessa de instalar um trailer para orientar turistas em Borda do Campo, um centro de visitantes em Prainhas, no Distrito de Porto de Cima; e fazer monitoramento policial via rádio, informando quem entra e quem sai do percurso nos fins de semana. É uma boa notícia. Essas medidas de segurança devem afugentar o fantasma de três mortes violentas ocorridas na trilha nos anos 2000, o que motivou muitos iniciantes a abortá-la dos planos de lazer.

Nessa nova fase que se inicia, percorrer o Caminho do Itupava, contudo, vai representar algo mais do que ter espírito aventureiro para enfrentar entre cinco e oito horas de caminhada. Trilhá-lo é também ficar pasmo com a sobrevivência da trilha por tantos séculos, à revelia do esquecimento da sociedade e da rapidez com que a Floresta Atlântica se renova. Por essas e outras, deve permanecer na categoria de lenda por muito tempo.

Qualquer leigo no assunto apostaria que uns míseros trechinhos teriam sobrado para contar história. Mas não foi o que aconteceu. Dos 22 quilômetros do Caminho do Itupava dentro da Serra do Mar – entre Borda do Campo, em Quatro Barras, e Porto de Cima, em Morretes – 16 foram restaurados. As áreas em que as pedras literalmente rolaram e a estrada sumiu estão demarcadas com brita, mas são poucas. A maior parte do granito carregado por índios e negros nas primeiras décadas do século 19, quando o caminho teve de ser pavimentado para melhor atender ao tráfego com mulas, permanece intacto. E em alguns pontos, liso como sabão.

Justiça seja feita. A permanência do caminho nesses idos de 2006 se deve em boa parte a um grupo que há mais de 60 anos não desgruda o olho da Serra, os montanhistas – dos de alto coturno aos do segundo escalão. Aos fatos. Com a abertura da Estrada da Graciosa, em 1873, e da Ferrovia Curitiba – Paranaguá, em 1885, o Itupava perdeu a serventia. Em sono profundo, a trilha viu passar a Abolição, o fim do Império, a chegada da República, do automóvel, quase toda a Ditadura Vargas e por pouco não ficou alheia à minissaia.

A redescoberta se deu nos anos 40, quando ir à Serra do Mar virou mania no Primeiro Planalto e litoral. Subir pela trilha indígena e colonial se tornou uma espécie de rito de passagem para quem ia escalar o Pico do Marumbi, Anhangava e similares. Não deu outra – os escaladores viraram defensores ferrenhos da estrada. Sobram evidências de que paixão incondicional, passada de pai para filho, fez as vezes do poder público, incluindo usar o próprio braço para domar a fúria da mata.

Ainda hoje, ONGs como a Caiguava cuidam de trechos inteiros da Floresta Atlântica, a exemplo do Morro do Canal, e não raro há grupos de esportistas auxiliando os quase 300 aventureiros, por final de semana, que ouviram falar do caminho e continuam indo até lá para serem batizados – apesar da proibição. De agora em diante, essas caravanas devem crescer. Não é difícil supor que os seus defensores estão fazendo figas para que o Itupava, renascido das cinzas, vire uma das bandeiras ecológicas do século 21. É o mínimo que se pode fazer por uma lenda que é pura verdade.

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