Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu não haver justificativa para a entrada dos policiais na residência onde foram achados 420 quilos de maconha.| Foto: Unsplash
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Em continuidade à serie de artigos que vem sendo publicada pela Gazeta do Povo, com a proposta de analisar criticamente os principais argumentos pró-liberação das drogas, à luz de fatos concretos e dados científicos, neste texto vamos cuidar do argumento segundo o qual a maconha medicinal reforça a necessidade de legalização da droga. Como se verá, a correlação nada mais é que um artifício do qual se serve o lobby da maconha para incutir na sociedade a ideia de que a maconha é uma droga tão benéfica, que até possui propriedades medicinais!

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Já demonstramos no artigo anterior que a propalada inofensividade da maconha é um mito, já que seu uso continuado, comprovadamente, leva a diversas doenças, inclusive psiquiátricas, como esquizofrenia e surtos psicóticos.

Por outro lado, é necessário reconhecer que a maconha possui, na sua composição química, princípios ativos que, segundo estudos, têm propriedades medicinais. Há estudos consistentes que indicam, por exemplo, a utilização do canabidiol (CBD) para tratamento de crises convulsivas.

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O que parece ser um dilema – malefícios da maconha e suas propriedades medicinais – é perfeitamente explicado a partir da constatação de que é diferente isolar um determinado princípio ativo com propriedades medicinais, para o tratamento de enfermidades, de simplesmente fumar a erva em sua forma crua, ou mesmo comê-la em doces, bolos ou congêneres. Na primeira situação, apenas o princípio ativo pretendido é consumido pelo usuário, em doses calculadas, enquanto no segundo é entregue o “pacote completo”, com os riscos dos efeitos deletérios já citados. Didaticamente, defender a legalização ampla da maconha, sob o argumento da finalidade medicinal, seria o mesmo que defender a legalização do ópio para viabilizar o uso medicinal da morfina. “Uma coisa é uma coisa; outra coisa, é outra coisa”, já diria o provérbio. Não há qualquer cabimento!

Maconha fumada ou consumida inviabiliza a dosagem segura

Muito menos há lógica em se defender que fumar a maconha em sua forma crua, ou mesmo comê-la em receitas seria uma forma de combater doenças, já que a prática, além de inadequada aos fins propostos, constitui um risco para o usuário. Primeiro, pois não é possível se isolar as substâncias presentes na planta, obrigando o usuário a consumir as “partes boas” e as “partes ruins”, como dito. É cientificamente comprovado que a maconha possui muito mais THC que CBD, por exemplo, sendo que o THC é o principal responsável pelos malefícios da maconha. Além disso, a utilização fumada ou consumida em receitas inviabiliza a adequada dosagem das substâncias. Como saber corretamente a dosagem de CBD presente em um cigarro de maconha, ou mesmo em um muffin de cannabis? Há evidente risco de superdosagem, com todas as consequências daí decorrentes.

Não se pode desconsiderar, ademais, que a disponibilização da droga por meio de doces, balas etc, acaba por ensejar um apelo peculiar, que atrai o desejo de crianças e adolescentes para o uso da maconha, contribuindo para sua precocidade, cientificamente associada à adicção  - quanto mais cedo iniciado o consumo, maiores as chances de vício.

Tanto é verdade que não há correlação adequada entre liberação da maconha e seu uso medicinal que, mesmo sob a vigência da proibição da maconha, já há no Brasil regulamentação para a comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização de produtos de cannabis para fins medicinais. Trata-se da RDC n. 327/2019, a qual, inclusive, traz expressamente que “os produtos de Cannabis serão autorizados para utilização apenas por via oral ou nasal” (art. 10) e que “não são considerados produtos de cannabis para fins medicinais os cosméticos, produtos fumígenos, produtos para a saúde ou alimentos à base de cannabis spp. e seus derivados” (art. 10, §5º).

Acontece que o lobby da maconha, ao invés de buscar junto aos órgãos competentes o investimento no desenvolvimento de medicamentos (de verdade) com substâncias encontradas na maconha, ou até mesmo a produção sintética das substâncias (CDB e THC), tem preferido defender a legalização ampla e irrestrita da droga, o que evidencia que a associação das propriedades medicinais de certas substâncias da droga à legalização nada mais é que um artifício para, por meios inderitos, obter-se o fim da proibição do uso em sentido amplo.

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Nos Estados Unidos, seguiu-se o caminho de minimizar o papel dos órgãos competentes – notadamente a Food and Drug Administration (FDA) -, aprovando-se o uso medicinal amplo da droga. Isso tem gerado um quadro de completo desvirtuamento do uso medicinal da cannabis em diversos Estados americanos. Segundo Kevin Sabet [1]:

“O governo federal certamente poderia acelerar a pesquisa sobre os componentes da maconha dando incentivos aos cientistas que estudam a droga e afrouxando os rígidos requisitos de pesquisa da maconha. Mas a situação atual - caracterizada pela comercialização em massa de maconha e a proliferação de “doutores de aluguel” que distribuem indiscriminadamente recomendações médicas para a droga - coloca os realmente doentes em risco, ao mesmo tempo em que prejudica o futuro potencialmente promissor de medicamentos à base de maconha, devidamente aprovados.

A maconha medicinal como está hoje, na Califórnia, Colorado e muitos outros estados, se tornou uma piada de mau gosto. Um estudo recente descobriu que o "paciente" médio era um homem branco de 32 anos com histórico de abuso de drogas e álcool e sem histórico de doença com risco de vida [2]. Outros estudos mostraram que muito poucos daqueles que buscaram uma recomendação teve câncer, HIV/AIDS, glaucoma ou esclerose múltipla [3]. Também estamos começando a ver uma ligação entre a maconha medicinal e o aumento do uso de drogas em alguns estados, de acordo com alguns estudos recentes [4] [tradução livre].

De fato, a associação entre legalização e uso medicinal da maconha, a pretexto de potencializar esta última finalidade, acaba por precarizá-la.

Além disso, embora haja mecanismos oficiais próprios para viabilizar o acesso da população a produtos medicinais produzidos a base de maconha, tem-se visto um movimento recorrente de judicialização da questão, sem os cuidados necessários. Têm sido recorrente, por exemplo, a impetração de habeas corpus preventivo para se assegurar a importação de sementes de maconha, bem como o respectivo cultivo, a fim de viabilizar a extração artesanal do óleo da maconha, para suposto uso medicinal em pacientes acometidos das mais variadas doenças (depressão, enxaqueca, dor nas costas…). Esses pedidos vêm instruídos com laudo de médico particular afirmando que o paciente não teve resultados positivos com a medicação convencional e que, a partir do uso da substância extraída da maconha, houve melhoras no quadro clínico.

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O Judiciário, sem a adequada instrução da situação fática (muito restrita em sede de habeas corpus), tem acolhido o pleito, em regra, concedendo aos impretrantes um salvo conduto irrestrito, para plantar a droga. Não há preocupação com a origem da erva que será utilizada; com os níveis de THC ou CDB dessas plantas; com o método de extração do óleo que será utilizado ou mesmo com cuidados básicos de manipulação de medicamentos. Não há a definição de controles sobre a destinação das sementes ou das plantas – afinal, o Judiciário sequer estipula uma quantidade máxima de plantas cuja importação ou plantio seja permitido.

Decerto, em muitos dos casos o paciente de fato necessita da medicação à base da maconha. Mas a situação demonstra como o apelo à compaixão pelos pacientes adoentados têm dado ensejo a um completo desvirtuamento do uso medicinal da maconha e até mesmo das funções do Poder Judiciário, que vem agindo sem a necessária autocontenção.

O que se demonstra, portanto, é que não há qualquer correlação entre a legalização das drogas e o uso medicinal de substâncias encontradas na maconha, sendo que o argumento tem servido de pretexto para o lobby da maconha angariar mais apoiadores para a causa, sob o falso argumento de que a legalização facilitará o uso medicinal. Busca-se com isso,  representar a maconha como algo benéfico, associado à saúde, o que mascara todos os efeitos maléficos da droga, já demonstrados.

“A noite não escurece de uma vez, escurece aos poucos”, diria o professor Edilson Mougenot Bonfim, o que nos alerta para a pecualiridade de que a suavização do discurso pró-legalização  constitui subterfúgio que pavimenta o caminho para uma finalidade maior, a legalização ampla e irrestrita das drogas.

O debate sobre a maconha medicinal deve ser realizado, mas reputamos que os alertas feitos nesse texto são essenciais para a exata compreensão de todos os aspectos nele envolvidos, para que a população não compre gato por lebre…

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* Lucas Gualtieri é Procurador da República. Ex-membro auxiliar do Procurador-Geral da República na Secretaria da Função Penal Originária no Supremo Tribunal Federal (2018). Membro Auxiliar da Procuradoria-Geral da República na Assessoria Jurídica Criminal no Superior Tribunal de Justiça. Coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público Federal em Minas Gerais. Pós-Graduado em Controle, Detecção e Repressão a Desvios de Recursos Públicos (UFLA); Pós-Graduado em Direito Público (UNIDERP). Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Estado de Minas Gerais.

[1] Sabet, Kevin. Reefer Sanity (p. 46). Beaufort Books. Edição do Kindle.

[2] O’Connell, T. et al. (2007). Long term marijuana users seeking medical cannabis in California (2001-2007): Demographics, social characteristics, patterns of cannabis and other drug use of 4117 applicants. Harm Reduction Journal. http://www.harmreductionjournal.com/content/4/1/16.

[3] Nunberg, H. et al. (2011). An analysis of applicants presenting to a medical marijuana, specialty practice in California. Journal of Drug Policy Analysis, 4(1). http://www.bepress.com/jdpa/vol4/iss1/art1.

[4] Cerda, M. et al. (2012). Medical marijuana laws in 50 states: Investigating the relationship between state legalization of medical marijuana and marijuana use, abuse and dependence. Drug & Alcohol Dependence, 120(1-3), 22-27; Wall, M.M. et al. (2011). Adolescent marijuana use from 2002 to 2008: Higher in states with medical marijuana laws, cause still unclear. Annals of Epidemiology, 21(9), 714-716.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]