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 | Mauro Campos
| Foto: Mauro Campos

O arquiteto que perambula pelas Torres

O arquiteto José Marcos Novak acumula longa quilometragem de Vila das Torres. Já teve ali um ateliê de peças de design com recicláveis e é conhecido de muitos moradores pela freqüência com que leva acadêmicos de Arquitetura ao bairro. Não é raro que alguns deles acabem adotando o local como posto de projetos.

A convite da reportagem, Novak circulou pela vila para identificar pontos que poderiam ser reurbanizados. A exemplo de outros profissionais com quem a reportagem teve contato, evitou fazer projetos, mesmo que fictícios, sem ouvir os anseios dos moradores. Mas não se furtou de indicar os locais que mais comprovam a situação de isolamento a que a vila ficou sujeita em seis décadas de existência. Além de Novak, a reportagem consultou os arquitetos Oscar Fergutz e Rafael Moreira, ambos ligados à região. Confira.

1. Permeabilização com a cidade: para Novak, faltam eixos visuais, ou seja, ruas interligadas com as demais partes da cidade, mudando a perspectiva da vila, rompendo com a realidade de isolamento quase medieval na qual se encontra. "É um antagonismo ser chamada de Primeiro Mundo e ter uma área assim. As perspectivas urbanas se rompem quando chegam aqui", comenta.

2. Desenho urbano: a vila é repleta de "muralhas" – obstáculos que impedem o fluxo das ruas. Ao fim de cada via, a rigor, quando não o rio, há barrancos com escadas, quadras de casas, outras ruas. Esses obstáculos fazem com que a área fique degradada, a exemplo do que o Minhocão fez em São Paulo na década de 70.

3.Desigualdade: a falta de infra-estrutura adequada faz com que as desigualdades internas sejam ainda mais gritantes, já que nem todos os moradores vivem com dois ou três salários, como indicou o Censo 2000 do IBGE. Arborização, passeios, etc. dariam um tom mais homogêneo à região.

4. Efeito cosmético: interferências urbanas não são para deixar bonito ou igual, ou tampouco têm poder de mudar comportamentos. Mas são um momento importante da convivência urbana – seja por causa da Pracinha do Batel ou pela ausência de calçamento da Vila das Torres. Na opinião de Novak, uma boa solução seria valorizar ruas como a Manoel Martins.

5. Canalização do Rio Belém: Novak se alista entre os que abominam a idéia de canalizar o Belém. "Seria a extrema-unção, uma declaração de que não se acredita em nenhuma possibilidade. Em coro com os moradores da vila, não tem uma vez que olhe para o leito do rio e não pense na possibilidade de que o local abrigue um parque.

A retirante mineira Maria das Dores Silva era ainda uma menina quando chegou ao Capanema, em 1951. Não esquece do que viu: dois casebres, o Centro da cidade ao fundo e a margem esquerda do Rio Belém. Prometia ser o melhor dos mundos. Cinco décadas, sete filhos, alguns netos e incontáveis quilos de papel depois, muita coisa mudou para Maria, 68 anos, profissão: carrinheira. Ela ganhou muitos vizinhos – algo próximo de 1,3 mil famílias. O Centro ficou ainda mais perto, tamanho o número de prédios que enxerga do beco onde mora, a Rua Antônio Cândido Ferreira. O Rio Belém permanece a postos e o pedacinho de Capanema onde um dia desembarcou virou Vila das Torres. Ali, vive com R$ 250 mensais. Quanto aos tais melhores dias, ficaram para depois. "Lá se vão 56 anos. Quer saber: estou cansada de esperar."

O sentimento de Maria é um mínimo múltiplo comum entre os moradores das Torres. Tenham 20, 30 ou 40 anos de bairro, costumam repetir quase sempre o mesmo lamento: não entendem como a cidade não chegou até eles se estão tão perto da cidade. Não há calçamento nem meio-fio nos 69 mil metros quadrados de pavimentação. Raras ruas encontram conexão com as avenidas próximas, fazendo do bairro uma muralha medieval. E a rua que permite essa ligação – a Guabirotuba – fez o desfavor de dividir o bairro em dois. Árvores são objeto de luxo tanto quanto um carrinho com amortecedor. Área de lazer – idem: mais de 70% dos 199 mil metros quadrados da vila são de área construída. E o que está vago – a beira-rio – não se parece em nada ao cenário que um dia encantou Maria das Dores. O Belém está morto, suas barrancas se encontram em petição de miséria e não passa dia sem que um sofá velho seja atirado no seu leito.

Não bastasse, estima-se que pelo menos 50 cavalos andem à solta pela região, deixando o saldo de suas descomposturas intestinais em qualquer esquina. Aos inconvenientes da eqüinocultura local, some-se a particularidade que cerca de 70% dos moradores das Torres são carrinheiros ou vivem desse mercado. Os terrenos minúsculos, pelo menos 150 deles abrigando mais de uma moradia, exigem que a separação do lixo seja feita do portão para fora, fazendo da vila uma paisagem única: além de cavalos, não lhe faltam comboios de carrinhos, montanhas de sacos pretos e o preço pago pela separação 24 horas por dia: lixo e mais lixo pelo chão. A usina que não pára é original, mas a falta de estrutura incomoda muita gente. "Curitiba nos trata como se fôssemos o quintal onde ela joga o que não lhe interessa", lamenta Cláudio de Sousa Santos, 36 anos, o Claudinho, presidente da Associação Vila das Ofícios, conjunto de 50 sobrados construídos em 1994 à margem direita do Belém.

Sustento

De acordo com estimativas do Instituto Lixo e Cidadania – ONG que opera na região –, 10 mil trabalhadores vivem da catação de papel em Curitiba. A vila tem 8,5 mil habitantes. Por essas contas, dá para afirmar que o pequeno pedaço de chão entre as ruas Brasílio Itiberê e Aquelino Orestes Baglioli é uma república de reciclagem, algo do que se orgulhar. Com um pouco de imaginação, a vila poderia ser visitada por turistas e escolares. Os dados oficiais, inclusive, confirmam a dependência da força-tarefa lixeira. Segundo a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, 90% do lixo seco da capital é recolhido por esses trabalhadores. Em contrapartida, permanecem à mercê do malcheiroso Belém, sem calçada, praças e arvoredo, e, o pior, sem reconhecimento pelo que representa na cidade que recicla 20% de seus detritos, um recorde nacional. "Quem olha, acha que aqui não nasce nem capim. Dá para acreditar que a alguns metros daqui está o Jardim Botânico, um dos cartões-postais mais conhecidos do país?", pergunta o presidente da ONG Vida Nova, o comerciante José Cordeiro de Siqueira, 44 anos, 32 anos de Torres, 18 de briga com o poder público para sanear um buraco perto de sua mercearia.

Diferenças

Para quem mora por ali, não dá para entender tanta demora. "É difícil explicar para uma criança por que uma quadra depois da casa dele a mesma rua em que mora tem asfalto e árvore na calçada", comenta Cordeiro. Basta pensar que ruas como a Chile – hoje um dos points da juventude curitibana – e a Balthazar Carrasco dos Reis – que corta a tradicionalíssima Água Verde, acabam tristemente por ali, num rancho fundo. Tão difícil quanto é entender por que a Vila das Torres simplesmente não existe. Isso mesmo – não existe. Parte das placas dizem Jardim Botânico, parte apontam Prado Velho, bairro com o qual está mais identificada e do qual representa míseros 10% da área.

Esse esquartejamento geográfico incomoda os moradores. Há 11 anos eles substituíram o nome Vila Pinto por Vila das Torres, como estratégia para se livrar do rótulo de lugar perigoso, miserável, ilegal. Mesmo sendo de conhecimento público que 65,4% dos imóveis são próprios, de acordo com levantamento da Cohab-CT, não faltam ali histórias de quem pedia entregas na casa de uma tia distante ou dizia no serviço morar em outro lugar, só para não se incomodar. A saia-justa, contudo, não resultou no desejo de ver a vila rateada entre os vizinhos, sumindo de vez do mapa. "Eu gosto é daqui. A cidade precisa se dar conta de que não somos o mesmo lugar de 20 anos atrás. Não é mais preciso andar com o vidro do carro levantado quando se passa aqui perto. Mas esse abandono, não dá. Acaba refletindo na educação do nosso povo e a vila não melhora", comenta o empresário Domingos de Souza Barbosa, 50 anos, dono de duas lojas de material de construção no Centro.

A crença de gente como Domingos e Cláudio – o líder da Vila de Ofícios – é que calçamento, arborização e um projeto urbanístico no Belém mexeria com a auto-estima dos moradores e mudaria de vez a maneira como a cidade lida com a região. Quem sabe, a adotaria, num belo final feliz. Deu certo na Avenida das Torres – onde havia um valetão de dar medo – e agora vem por aí a Linha Verde, argumentam. "Uma vila bem-tratada, por que não? Mudaria o comportamento da nossa gente. O pessoal de fora vem aqui e romantiza. Tem quem saia do Botânico e passe aqui perto para mostrar a Torres, que precisa ser cuidada como se fosse uma verruga. Não podemos ficar para sempre assim. Não somos o Patinho Feio", protesta Claudinho.

Intervenções

O assunto é um campo minado. Especialistas em movimentos populares têm ojeriza a ações salvadoras. São quase sempre politiqueiras e têm o tempo de vida de uma mosca. Curitiba já sofreu maquiagens urbanas às pencas. Arquitetos e urbanistas tendem a rejeitar planos cosméticos, por todos os motivos do mundo – principalmente por serem uma negação da pobreza, transformando os espaços à imagem e semelhança da classe média. "É um risco", reconhece o arquiteto José Marcos Novak, 40 anos, professor do UnicenP e com longo histórico de trabalho nas Torres (leia nesta página). Certeza, só uma. Dá para ver Curitiba da Vila das Torres, mas Curitiba mal faz visitas por lá. Isso não é normal.

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