A profissão de ajudante de pedreiro fez de Romão um operário itinerante, indo sempre onde aparece serviço. Dois meses de trabalho valem cinco dias de descanso. Numa dessas folgas, ele saiu de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, para visitar a mãe na cidade natal de Castro, nos Campos Gerais do Paraná. Uma viagem para não esquecer. O martírio de dois meses e as seqüelas tatuadas no corpo e na mente de Romão ajudam a compreender a subjetividade da Justiça, a falência do sistema prisional e o juízo de valores da opinião pública. Preso por um crime não cometido, ele foi torturado durante 59 dias na cadeia local.

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Romão de Jesus Camargo tem 31 anos e até os 25 criou-se junto dos pais, em meio a plantações de milho e feijão, na zona rural de Castro. Em 1999, com o emprego na Construtora I.C. Guedes Ltda. passou a viajar a trabalho e a ter salário fixo, hoje de R$ 800, uma boa renda para um jovem da roça que largou os estudos na 5.ª série. No ABC Paulista conheceu Edna, na época assessora de um vereador. Na maior parte do tempo, Romão ficava no alojamento da firma, enquanto Edna aguardava pelos dias de folga. No feriado de Páscoa, ela finalmente conheceria a sogra. Foi em abril de 2005. Como esquecer?

Mal chegou, Romão soube da visita da polícia à casa da mãe, meses antes, e do aviso para comparecer ao Fórum. Foi, sem saber do que se tratava. Saiu algemado, direto para a cadeia. Edna foi atrás. Não fazia uma hora que fora levado e Romão já não parecia o mesmo, diz a mulher. A boca amarrotada a socos vertia sangue, os braços estavam cortados com lâmina de barbear, as costas cobertas por vergões marcados por cabo de vassoura, os pés queimados com um lança-chamas improvisado com frasco de desodorante aerosol. Seria apenas a primeira das 1.415 horas de tormento que se seguiriam.

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Os policiais o jogaram na cela e disseram: "Conta o que você fez." Romão falou então da acusação contra ele. Nada mais foi preciso dizer. Ele seria julgado e condenado pela lei das prisões, onde matador tem mais valor do que estuprador. As surras se repetiriam incontáveis vezes. O primeiro banho seria inesquecível. Os colegas de cela esperaram a água do chuveiro acumular sob seus pés para acionar os fios desencapados já conectados à tomada de luz. Foram tantos os choques elétricos que os pêlos deixaram de nascer nas pernas. Os caroços na cabeça são outras seqüelas da tortura. E assim seguiram-se as horas, por longos 59 dias.

O cenário da tortura é particularmente assustador. A cadeia pública de Castro foi erguida na década de 1980 sobre uma várzea, tornando-se insalubre, úmida e escura. Tudo parece conspirar contra os presos. Calor intenso no verão, frio insuportável no inverno. A estrutura para 24 detentos hoje tem 85. As celas construídas para quatro pessoas abrigam até 12. Quem pode, dorme nos beliches; quem não pode, dorme no chão. As entradas de ventilação e luminosidade foram fechadas com chapas de aço, numa tentativa para evitar fugas. Tão assustadoras quanto o lugar são as circunstâncias que levaram Romão até ali.

Seu destino começou a se desenhar em fevereiro de 2004, quando a gravidez de uma menina de 11 anos foi descoberta na aula de Educação Física. A escola avisou o Conselho Tutelar, que acionou o Ministério Público, que levou o caso de estupro à delegacia de polícia. A menina acusou Romão, vizinho na Vila dos Pacas, uma fileira de casebres que se estende por uns dois quilômetros às margens de um braço morto do rio Iapó. A Justiça determinou a prisão de Romão, mas ele só seria encontrado 14 meses depois, quando, naquele fatídico dia, foi ao Fórum saber o que queriam com ele. Era 4 de abril de 2005.

Maria de Lourdes Camargo, de 63 anos, teve de sair carregada da delegacia ao ver o estado do filho no primeiro dia no cárcere. Doíam-lhe todos os fiapos de nervo. "Eu só queria chorar", lembra ela de pé no chão de terra batida do barraco onde criou sete filhos (outros sete morreram). Nos dias seguintes, dona Maria se entupia de remédios para enfrentar a visão do filho estropiado. Ela diz que nos tempos de benzedeira chegou a pegar no colo a menina que acusou Romão de estupro. "Mas eu sempre dizia pra ele: quem não deve não treme (sic)."

Com o marido trancafiado, começaria a luta de Edna para provar a inocência do companheiro, o que lhe custou o emprego devido à longa ausência do trabalho. Para evitar a continuada tortura, ela tinha de ceder às exigências dos presos e levar cigarro, pão, bolacha, café, açúcar. Os pedidos chegavam em bilhetinhos entregues pelo marido, que apanhava do mesmo jeito. A prova da inocência estaria num exame de DNA, conseguido à custa de dois meses de luta para convencer a família da menina. O pai dela – tão vítima quanto Romão – relutou até a advogada Denize Ramos adverti-lo de que falso testemunho também dá cadeia. Ele disse não saber que era crime o que aconteceu com a filha.

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A criança, nascida prematura de 7 meses no dia 21 de abril de 2004, tinha 1 ano de idade quando coletou-se o material para o exame de DNA. Edna se endividou para pagar os R$ 400 do teste, mas não reclama. Romão foi solto dia 3 de junho, tão logo saiu o resultado descartando a paternidade. Acobertado pela menina, o verdadeiro pai nunca apareceu. Hoje, aos 14 anos de idade, ela tem outra filha, também de paternidade ignorada. Já o pai da menina fugiu com outra mulher pouco depois de sair o resultado do DNA. A família morava a poucos metros da casa da mãe de Romão, e ali todos dormiam amontoados num único cômodo do casebre de madeira.

Passados 18 meses, as seqüelas psicológicas persistem. Romão tornou-se um sujeito atormentado que vive à custa de remédios para dormir. Mesmo provada sua inocência, ainda pesa sobre ele o dedo acusatório da opinião pública. Muitos do lugar ainda o tratam como culpado. "Quando a gente passava na rua, as pessoas diziam pras crianças ‘entre em casa que o estrupador (sic) tá passando’", diz Edna. "Esse tormento nunca vai acabar", completa Romão. Para essas pessoas, ele sempre será no mínimo suspeito.

Os 59 dias seguidos de tortura fizeram de Romão outro homem. "Volta e meia ele acorda assustado no meio da noite, às vezes aos gritos", diz Edna. São os reflexos dos pedidos de socorro ignorados na prisão, não por desconhecimento das autoridades. Os maus-tratos a presos na cadeia de Castro tornaram-se públicos no dia 5 de maio de 2005 por meio do jornal local Página Um. Vinte dias antes, na primeira audiência, ele já havia relatado com minúcias à Justiça as agressões sofridas no cárcere. Ficou três dias isolado, e só.

Outras provas da tortura são quatro prontuários médicos do Hospital Anna Fiorillo, entre 8 de abril e 25 de maio. Depois de cada atendimento, Romão voltava para junto dos mesmos agressores. Dos sete colegas de cela, seis o espancavam. Os resultados aparentes das agressões podem ser medidos pelo laudo do Instituto Médico Legal de Ponta Grossa feito nove dias após a prisão: o nariz, um dedo e dois fios de costela quebrados, queimaduras de segundo grau nos pés e nas nádegas, cortes nos braços e pernas e hematomas generalizados por todo o corpo.

O delegado Messias Antônio da Rosa, titular da delegacia desde o início do martírio de Romão, alega não dispor ainda hoje de celas para o isolamento de presos ameaçados pelos demais. Ele tenta separar os acusados de crimes sexuais em uma única cela, o que não funcionou no caso de Romão. O vaivém dele entre o hospital e a delegacia acabou se tornando mais uma rotina policial. À advogada de Romão, Denize Ramos, o delegado teria dito: "A senhora quer que eu faça o quê? Que eu leve ele para casa?"

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Em nota à Gazeta do Povo, a Secretaria da Segurança Pública do Paraná diz que, em abril de 2005, depois de várias fugas e falta de controle dos detentos da delegacia de Castro, substituiu o delegado Durval Athaíde Filho. Messias assumiu o cargo em 18 de abril, 12 dias após a prisão de Romão. "Nenhum fato contra este preso foi registrado", diz a nota. A Sesp informa que tomará providências para apurar o caso e responsabilizar os envolvidos, mas não precisará esperar muito para ter notícias do caso.

Romão cobra na Justiça uma indenização de R$ 800 mil por danos morais e estéticos e pela redução da capacidade de trabalho – o osso do dedo quebrado se calcificou de forma tortuosa por falta de atendimento. O dano moral, diz ele, começou com a injusta acusação, seguida da prisão também injusta e da indiferença do estado diante dos gritos por socorro.