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Confraternização dos soropositivos na chácara dos capuchinhos, em Almirante Tamandaré | Fotos: Daniel Castellano/ Gazeta do Povo
Confraternização dos soropositivos na chácara dos capuchinhos, em Almirante Tamandaré| Foto: Fotos: Daniel Castellano/ Gazeta do Povo
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Frade radicaliza na acolhida aos contaminados

Frei Pedro num encontro do Grupo de Adesão do HC, em Almirante Tamandaré

Contra. Do alto de seus 26 anos de atendimento pastoral a soropositivos, o frei Pedro Brondani discorda da tese de que se deve antecipar a adesão aos antirretrovirais. Os efeitos colaterais não pagam a pena, comenta o religioso, que vê na proposta uma estratégia da indústria farmacêutica. "Eles vivem mais, mas a que custo? O HIV não é como uma gripe", opina o homem que contesta os próprios números da aids – melhor seria aceitar que 10% da população está contaminada e jamais descuidar das campanhas. "Não dá para esperar o carnaval". Pelos dados oficiais, em Curitiba haveria 32 mil soropositivos.

Para a enfermeira Maria Alba de Oliveira Silva, que atua com o frade no "Grupo de Adesão do HC", contudo, é muito difícil contrariar os protocolos. Pessoas com CD4 alto – ou seja, com imunidade boa – devem ter acesso a medicamentos dos programas do governo.

Missão

O pontagrossense Brondani entendeu o significado da aids em 1988, então um recém-ordenado. Morava nos arredores de Londrina, no Norte do Paraná, quando foi chamado para "encomendar" um corpo, como ainda se fala. Era de um jovem de família rica, morto nos EUA, em decorrência do HIV. O caixão chegou lacrado. "No velório estávamos apenas os pais dele e eu, só", conta, para bons entendedores. Embora tenha se dedicado também às vítimas de hanseníase, frei Pedro foi "contaminado" de pronto pelo drama da aids.

Nos anos seguintes, participaria de abertura de casas de acolhida em Foz do Iguaçu e no Norte Pioneiro, até chegar a Almirante Tamandaré, na Região Metropolitana de Curitiba. O próximo passo é a África, onde a aids é um dos principais problemas de saúde pública. No convento onde mora – um seminário à moda antiga, com muitos quartos e áreas verdes – o capuchinho recebe contaminados em busca de conforto e orientação.

Travestis, transexuais estão entre os que são acolhidos na área de hospedagem do convento, sem distinção, até que se sintam fortalecidos para voltar à vida comum. Costumam ficar até uma semana. Há os que procuram o frei pelas redes sociais – os conflitos em torno da sexualidade e da doença são infinitos, comenta. "Eles se assustam quando veem esse cara barbudo dizendo que os ama e aceita. Para mim, é o Cristo que está sofrendo neles", comenta.

"Tive sim de enfrentar meus próprios conflitos ao me deparar com o mundo dos soropositivos. Logo lembrei que ‘a casa de Deus tem muitas moradas’. Não faz sentido achar que só um tipo de gente vai participar do Reino dos Céus", conta o homem pequeno de longas barbas brancas, cordato, que se emociona ao lembrar dos muitos que morreram em seus braços, nas casas de acolhida em que trabalhou. "Tenho certeza que morreram acreditando num Deus misericordioso", completa.

O carisma franciscano de frei Pedro Brondani convive com o espírito combativo. Ele se escora nos documentos da Igreja para defender que a vida é um bem supremo, que deve ser defendida acima de tudo. Mesmo assim, muitos se surpreendem ao vê-lo, de hábito, em datas ocasionais, como o Dia Mundial de Combate à Aids, distribuindo preservativos. "Quanto menos informação, mais risco", resume. Há o momento da negação, depois a culpa – de Deus e de si mesmo. Meu esforço é mostrar a essas pessoas que elas são mais do que o HIV."

  • 15 anos de grupo: Cena da festa
  • Maria Alba e Adônis: amizade no
  • Amizade entre as cinzas: Foi há seis anos. Primeiro veio a surdez, depois o emagrecimento, enfim a notícia. Ito Martins, 64 anos, descobriu que era soropositivo. Ficou sem eira, pelo menos até encontrar o enfermeiro Anísio Macedo, 65, que cuidou dele até que se estabilizasse.
  • A aids e a solidão:
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"Pessoal, hora de dar os 12 abraços...", bate palmas e avisa o capuchinho Pedro Brondani, 50 anos, para os pouco mais de 20 membros do "Grupo de Adesão" que funciona no Hospital de Clínicas da UFPR. Por que 12 e não 10, nem frei Pedro sabe explicar. "Inventei no chute", confessa. Quanto ao abraço, o motivo é evidente: as pessoas que estão ali foram contaminadas pelo HIV e em algum momento deixaram de ser tocadas por parceiros, parentes e amigos. Um abraço não basta para confortá-las. Já 12... Poucas reuniões terminam tão calorosas quanto essa.

INFOGRÁFICO: Confira o número de contaminados no Brasil

O "Grupo de Adesão do HC" foi criado pela enfermeira Maria Alba de Oliveira Silva, 54 anos, e pelo assistente social Silas Moreira, 53 anos. Frei Pedro e a turma com a qual atua na Pastoral da Aids, da Arquidiocese Metropolitana de Curitiba, vieram atrás. Todos batem ponto no HC nas tardes de terça-feira, quando acontecem os encontros.

Não tem segredo. Forma-se uma roda de conversa, quem levanta a mão ganha a palavra. Silêncios são raros. Um pede para falar de angústias de momento, outro quer contar que está namorando – e se "tudo bem?" O homem com HIV quer saber se "aguenta" um tratamento para hepatite C. A senhora conta mais uma vez como a tragédia da doença lhe reservou uma experiência mística. Convive com o vírus faz mais de 20 anos, o que não é raro por ali.

Não há pauta fixa – o grupo nasceu para criar vínculos afetivos e ajudar as pessoas a incorporarem os medicamentos à sua rotina, 365 dias por ano, nos mesmos horários, pois do contrário o remédio vira veneno. Quem já teve rejeição a cápsulas e afins sabe como é. Some-se que o tratamento tem de ser para sempre, que a doença carrega um estigma e que os efeitos colaterais dos medicamentos são tantos que convidam ao fracasso.

Festa

No começo do ano que vem, o "Grupo de Adesão do HC" completa 15 anos. Vai ter festa. É uma daquelas experiências simples, mas tão bem-sucedida que, num mundo perfeito, seria apresentada em congressos e copiada aqui e ali. Não é o que acontece. Todas as semanas, Alba e Silas precisam conseguir uma sala para o encontro, ratear o lanche, como se habitasse as catacumbas. Nem amostras grátis da indústria farmacêutica recebem mais. "Às vezes, me pego pensando que se fosse projeto encabeçado por um médico haveria mais apoio", lamenta a enfermeira, recém-aposentada nas Clínicas, hoje voluntária. Conta ter largado mão de todos os sonhos de reconhecimento por seu trabalho, menos um: deseja que o projeto se torne política de saúde pública – uma vez que os benefícios são comprovados. Faz sentido.

Os coquetéis

O programa brasileiro de distribuição de antirretrovirais, os coquetéis antiaids, como foram apelidados nos anos 1990, costuma ser apontada como a melhor do planeta. São 21 drogas distribuídas para 313 mil pacientes. Mas essa eficiência não é o bastante para driblar o maior dos impasses – a interrupção do tratamento, logo que alguém sente o impacto causado pelas drogas. Quando deixa de tomar os comprimidos, ou o faz de forma irregular, o paciente "queima" a medicação, como se diz, obrigando a doses maiores e à experimentação de fórmulas diferentes. Nem sempre esse câmbio é possível. Fácil deduzir o desfecho.

De briga com os comprimidos

"O grupo de adesão foi a minha primeira terapia", resume "G.", 48 anos, militante da área da saúde. Contaminada pelo marido há uma década, entrou em "parafuso". Rejeitava até água, quanto mais os comprimidos, que lhe caíam como um veneno. O infectologista Alceu Fontana Pacheco Júnior interferiu. "Me fez ver que eu queria morrer, mas disse que não iria deixar isso acontecer..." Uma das medidas foi encaminhá-la a Alba e Silas, que lhe apresentaram a pessoas que viviam o mesmo dilema, que tinham família, amores, emprego e que estavam em pé. "Me animei. Descobri que não era sozinha. Um dia cortei o cabelo, me maquiei e vim para cá. Foi o recomeço", lembra.

No grupo, além de fazer amigos, "G." aprendeu a afugentar o maior entrave na rotina dos soropositivos – os efeitos indesejáveis dos medicamentos: da concentração de gordura à perda de musculatura facial, passando por enjoos e diarreias, além da irritabilidade e a perda da memória – o Ministério da Saúde lista 10 efeitos. Só o item distúrbios gastrointestinais soma 12 efeitos. É preciso se colocar no lugar dos soropositivos para entender. Esses sintomas podem se manifestar no trabalho, na sala de aula, dentro de um ônibus – obrigando a descer às pressas, voltar a pé.

Sucesso ou insucesso

Alba e Silas estudam a rotina de cada um, onde e com quem moram, o que comem, que horas dormem, se trabalham, se a família sabe da doença. Qualquer condicionante pode determinar o sucesso e o insucesso das cápsulas ou injeções. Cabe à dupla mostrar que é possível. "Engolir um comprimido depende e muitos fatores. Temos de manejar tudo, da sexualidade à espiritualidade", brincam os idealizadores do projeto. "Quando aconteceu o primeiro óbito, a gente pensou ‘e agora?". Daí a importância de levantar a mão e pedir para falar. É nesse gesto banal de civilidade que se fica sabendo dos pequenos e grandes motivos para deixar de tomar os remédios, pondo tudo a perder.

"Meu advogado disse que eu mereço a doença que tenho", conta "J", uma viúva, sobre uma discussão profissional que acabou em golpe baixo. Desestabilizou-se, o bastante para mandar tudo às favas. Mas não dessa vez. Depois do grupo de adesão, deu de acreditar que vai usar salto alto de novo e se pôr bonita. Essas histórias fazem a alegria das tardes no HC. Tempos atrás, apareceu um pretendente para "J". E agora? Para desmotivá-lo na conquista, disse que não sabia cozinhar. "Como contar a verdade?", pergunta ela, sobre um dilema amoroso que nunca ninguém se preparou para resolver. O grupo tenta ajudar. Nem sempre sabe a resposta. Amigo é para essas coisas.

Grupo de Adesão

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