• Carregando...
Moradores da Vila Torres em protesto na Câmara, em 2008: décadas de espera. | Albari Rosa/Gazeta do Povo
Moradores da Vila Torres em protesto na Câmara, em 2008: décadas de espera.| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

Na quarta-feira passada, os líderes comunitários Esny Alves de Souza, 50 anos, e João Maria da Silva, 37 anos, almoçaram às carreirinhas e se mandaram para a esquina da Visconde de Guarapuava com a Barão do Rio Branco. Ali, armaram sem rodeios uma "sessão da tarde" política. Os milhares de carros que subiam em direção ao Centro ganharam um acréscimo à paisagem: além da imensa avenida pela frente, e a Câmara Municipal à esquerda, viam no meio do canteiro a imensa placa de reivindicações plantada pela dupla de moradores da Vila Torres. Impossível não reparar.

O cartaz aludia aos "40 anos" da vila – na verdade muito mais do que isso – e listava pedidos como um liceu de ofícios, mais um semáforo na Rua Guabirotuba – a Faixa de Gaza da região –, além de aumento de vagas na creche e uma sede do Armazém da Família mais perto do Prado Velho. "Na hora de escrever, faltou espaço para a unidade de saúde. Em poucos minutos, vereadores iniciariam a votação do orçamento para 2008. E era preciso garantir o quinhão da Torres – ao lado do Parolin, a comunidade de periferia mais conhecida de Curitiba.

Como mostrou a Gazeta do Povo em reportagem publicada ontem, a agilidade, franqueza e coragem com que os moradores da antiga ocupação se mobilizam é de fazer inveja ao Greenpeace. Não por menos, estudar pobreza, violência, organização comunitária ou tema que valha exige de pesquisadores e agentes públicos bater ponto na velha Torres, um lugar onde tudo acontece. Quer-se saber que mistérios tem a comunidade que – com a facilidade de quem assa um cuque – faz da movimentada Avenida Comendador Franco uma tribuna guerra. Desde 1968 não se via nada igual.

Os motivos do fascínio, contudo, vão além do som e da fúria da turma da vila. Há sempre uma questão não respondida em se tratando da comunidade: por que, apesar de próxima do Centro, sua urbanização é tão sofrível? Por que permaneceu violenta e sitiada apesar de ter 10% apenas de sua população sem posse dos terrenos? O doutor em Ciências Sociais Lindomar Bonetti, da PUCPR, figura entre os muitos estudiosos que se fazem essas e outras perguntas.

Bonetti mantém um núcleo de investigação sobre as estratégias utilizadas por famílias muito pobres para se apropriar do espaço onde vivem. Em miúdos, busca-se saber como se viram com tão pouco dinheiro e de que maneira os saberes trazidos por ONGs, escolas e órgãos governamentais interferem no modo de vida dessa população. Embora tenha circulado por vários espaços empobrecidos da cidade, o pesquisador reconhece que até agora foi a Torres que mais lhe forneceu matéria-prima para análise.

Não lhe causa espanto: é uma zona de conflito, mais organizada, mais rica que as outras zonas favelizadas e mais próxima de onde se produz o crime, a droga, além de vizinha do poder. Sem falar da estranheza de não ter virado zona nobre, como o antigo Capanema, hoje Jardim Botânico. "A Vila Torres se apresenta de forma contraditória", explica Lindomar Bonetti, ao citar a estranha convivência entre organização comunitária e criminalidade.

Sempre se espera que uma força iniba a outra. Como isso nem sempre acontece, a região acabou se tornando uma espécie de desafio científico. Não faltam hipóteses para explicá-la. Para o sociólogo, a vila se constituiu uma espécie de "lixão da cidade". Ele não se refere apenas aos detritos levados para lá pelos carrinheiros, mas também ao lixo do crime, da contravenção, da falta de organização social e de regras. Tudo o que não dá certo acaba sendo empurrado para lá. "A população ali é vítima dos conflitos sociais, não sua causadora", diz, de posse da chave-do-segredo: em 50 anos, a potente Curitiba não conseguiu absorver essa população tão próxima, garantindo-lhe moradia, emprego, escola e menor vulnerabilidade social.

Isolamento

Ao trabalho de Bonetti se soma o de outra pesquisadora, Fábia Berlatto, 29 anos, mestranda em Ciências Sociais pela UFPR, orientada pelo sociólogo Pedro Bodê, decano dos estudos de violência no estado. Fábia pesquisou anteriormente a relocação dos moradores da favela do Capanema, na década de 70, em bairros como Boqueirão e Alto Boqueirão. Agora estuda o efeito das ocupações policiais na Vila Torres a partir de 2005. E pisa em campo minado.

Essas ações da PM costumam ser criticadas pela pirotecnia, pelos resultados pífios e pelos estragos causados na população. Como está em fase de coleta de dados, Fábia se limita a dizer que a chegada maciça das forças de segurança no bairro afeta profundamente a auto-estima dos moradores. "A vila é confirmada diante da cidade como lugar pobre e violento", comenta. No mais, a cientista social não tem colecionado grandes espantos em suas incursões à vila: percebe o uso político das organizações sociais e se convence a cada etapa que a aparente contradição de um local como a Torres em Curitiba é resultado do modelo desenvolvimento aplicado na capital.

"Não se trata de fazer olhar de peixe-morto para a vila", brinca, "mas a Torres não é exceção, ela faz parte de uma estratégia de crescimento que deixou parte das pessoas à margem", explica Fábia, referindo-se às práticas que vingaram de Norte a Sul do país, ampliando a desigualdade, o desemprego e a falta de habitação. "Aqui a situação é um pouco mais perversa, pois se faz uso de uma maquiagem, de um discurso de planejamento urbano, fazendo crer que a Vila Torres não condiz com nossa realidade e que a situação da região é responsabilidade apenas de seus moradores, que não teriam se enquadrado nos padrões civilizados de uma cidade como a nossa."

Vida na bolha

O morador José Cordeiro, 45 anos, dono de uma mercearia na beira do Rio Belém, é uma espécie de prova secreta de que a teoria de Fábia faz sentido. Embora desde criança na vila, ele ainda se surpreende ao ler matérias nos jornais, discursos políticos e ações governamentais tratando a Torres como se não fosse parte de Curitiba. "Eu me sinto morador de uma bolha. É como isso aqui fosse uma porta imaginária, que alguém abre, espia, depois fecha e vai embora", compara. A jornalista e publicitária Silvana Fcachenco – que desenvolve trabalhos com a comunidade – assiste de dentro do furacão a essa espécie de "irrealidade cotidiana". Fica tão pasma quanto José. "Os moradores fazem a lição de casa. Mas não recebem resposta. A vila precisa entrar na agenda da cidade, e não apenas na da segurança", alerta. Era o que Esney e João tentavam dizer em seu protesto solitário na Visconde.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]