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Veja onde fica a Vila Torres |
Veja onde fica a Vila Torres| Foto:
  • Marcão- A garagem do morador das Torres Marcos Eriberto dos Santos está apinhada de garrafas pet. Ele aguarda também a doação de um lote de embalagens tetra pak – e a realização de um sonho: transformar a vila numa usina de produção de aquecedores ecológicos. Cerca de 30 jovens já fizeram o curso de capacitação para o projeto – capaz de resolver um dos maiores problemas da comunidade: a geração de renda. A procura por programas de apoio para crianças e adolescentes virou uma marca da comunidade, capaz de impressionar quem olha de fora. Até o Ideb (notas em avaliações escolares do governo) das escolas públicas locais as lideranças querem conhecer

Sexta-feira é um corre-corre danado na vida do eletrotécnico Marcos Eriberto dos Santos, 37 anos, o Marcão. Finda o expediente, ele deixa de lado os rádios e televisores que deve consertar e se desdobra em cinco para dar cabo a outra tarefa: conduzir cerca de 50 crianças ao Caico – Centro de Apoio e Integração Comunitária da Vila Torres. Ali, instalou uma espécie de Cinemateca Charles Chaplin, na qual projeta clássicos como O Garoto, O Circo e, na última semana, Luzes da Cidade.

O espaço é modesto – tem duas paredes de concreto e uma cobertura de Eternit –, mas está ao alcance dos olhos dos curitibanos tanto quanto a Ópera de Arame ou o Jardim Botânico. Na hora do pico, pelo menos 3 mil carros por hora passam na frente do "Cine Marcão", que fica na Rua Guabirotuba, área mais movimentada da região que nos últimos seis meses ganhou cadeira cativa na mídia paranaense. Como se sabe, não por causa da sala de projeção onde brilha o ilustre mendigo Carlitos.

Eis a questão. A cada novo surto de violência que assalta a zona do Prado Velho, a vila dá uma marcha à ré. É como se voltasse ao posto de marginal, do qual pediu demissão umas tantas vezes. Não é nada agradável. Num estalar de dedos, é como se ações praticadas no Caico – e em pelo menos outras 15 organizações sociais nascidas nas Torres – virassem poeira, reduzindo o local a uma única verdade: a de divisa do tráfico na capital.

Para a criançada que sai do cineminha cantando "luzes que se apagam, nada mais, lamentar perdidas ilusões", ou que freqüenta os programas de contraturno da Maurina Carvalho e do Adílson Pereira, na ONG Associação Iniciativa Cultural, resta a dúvida: em que vila moram, afinal? Os atuais líderes comunitários conhecem o peso dessa pergunta. Eles têm entre 30 e 50 anos de idade, nasceram sob o estigma vileiro e sonharam com o dia em que não precisariam mentir o endereço para conseguir emprego. Muitos poderiam ter dado adeus à região, mas preferiram ficar, oferecendo o próprio braço para fazer dali um bom lugar para viver. Às vezes, desanimam. Não deveriam.

Fala-se muito que a Torres é uma zona de perigo. Mas se comenta pouco que ali se desenvolveu um dos mais importantes modelos de organização popular e comunitária da cidade. Em certo sentido, a vila é o pai-de-todos. Por ser uma das primeiras ocupações da capital, nascida na sombra da extinta Vila Capanema, acabou exportando moradores para diversos bairros, como o Boqueirão, Sítio Cercado ou a CIC, por onde disseminou também suas práticas associativas.

Hoje, com a inauguração da "era Juvenal Antena" – líder único, autoritário e inibidor da comunidade – o estilo Torres de organização popular virou um luxo. O modelo pode ser visto em áreas como o Bolsão Sabará e na própria vila, onde é possível identificar, só no "primeiro escalão", três dezenas de atores comunitários para uma população de 8,5 mil pessoas.

Não se trata de um mar de rosas, obviamente. As lideranças se estranham com freqüência. Sobram ali divisões partidárias e picuinhas, o que também ocorre na Casa de Windsor. Neste ano, por falta de verba e de paciência, dissolveram-se os seis times de futebol do bairro; a ONG Vida Nova – um guarda-chuva debaixo do qual se abrigavam todas as outras organizações locais – fechou as portas.

A assistente social Izabel Benvenutti, do Ministério Público e há mais de um ano em contato com a comunidade, endossa que a Babel de interesses torna a vila um lugar muito particular. "Eles são propositivos", resume o arquiteto Omar Ackel, coordenador da Regional Matriz, à qual a vila pertence. Ackel – que acumula mais de 40 anos de serviço público – cita cada um dos líderes pelo nome, tantas vezes se sentou com eles em sua sala, na Praça Rui Barbosa.

Mas eles também concordam em outro ponto: diferenças à parte, a turma da Torres tem uma capacidade impressionante de aparar as arestas e trabalhar em conjunto, o que deve ter aprendido na marra em décadas de a ferro e a fogo. Izabel – parceira do procurador de Justiça Saint-Clair Honorato dos Santos no Observatório da Habitação, voltado para a comunidade – é enfática. "Eles querem reduzir diferenças e se preocupam com as futuras gerações. A alegria do cotidiano na vila me impressiona. Ninguém imagina", elogia.

A quantidade de vozes – do tradicional Clube de Mães ao recente centro de educação ambiental do João Marrinho – impressiona pesquisadores, que não raro adotam a vila como seu campo de investigações. O caldeirão local também atiça os políticos, que historicamente firmam currais ali, de olho no osso: trata-se, afinal, de numa parcela da cidade que é empobrecida, mas craque como poucas na hora de erguer uma tribuna. Basta pensar em fatos recentes, como as três paralisações da Avenida Comendador Franco em pleno horário de rush para protestar contra a polícia. À moda antiga, a turma da Torres põe faixa, queima pneus e usa alto-falante para dizer o que pensa. Sabe virar notícia. E ninguém em sã consciência despreza qualquer ruído que venha daquelas margens do Rio Belém.

A comunidade só não pode dar as caras quando o assunto é o tráfico – maior tormento, desde os tempos de Vila Pinto. Quem acompanhou as notícias dos últimos meses deve ter se deparado com uma frase freqüente "um morador que não quis se identificar." Em peso, a turma da vila decidiu não se expor ao perigo para tratar de um assunto que os deixa com os nervos à flor da pele. "Como explicar que um adolescente porte uma arma que pertence ao Exército", escreveu à redação, dia desses, uma moradora, deixando claro que as relações criminosas ali não são assunto à altura de donas de casa, catadores de papel e moradores de velha data.

Não se pode criticar o silêncio dos líderes – eles vivem uma contradição que beira o insuportável. Têm a Agenda 21 mais ativa da cidade – já produziu 5 mil sacolas ecológicas e mobiliza uma dúzia de costureiras – mas ao mesmo tempo assiste, de camarote, a faroestes como os de setembro, com nove baleados. Criaram o primeiro restaurante para catadores de papel da capital – um marco na integração da turma que responde por 70% da reciclagem em Curitiba –, mas convivem com linhas proibidas.

Dia desses, um morador "que não pode ser identificado" caiu no choro diante de uma autoridade ao contar nos dedos os garotos mortos apenas na sua vizinhança. Por isso tantos viram anônimos a cada nova tragédia. Vale lembrar que o silêncio imposto não é a única mazela com a qual os moradores têm de conviver. Tanto quanto a criminalidade, morar na vila é se perguntar, um milhão de vezes, por que uma área tão próxima do Centro permanece, por cinco décadas, com uma urbanização sofrível. Essa pergunta é o estopim da bomba – a resposta, afinal, costuma ser cruel demais.

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