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Curitiba – "Os bandidos perderam os limites". Frases como essa têm sido repetidas em todo o país nas últimas semanas, motivadas por uma seqüência de crimes bárbaros – o menino de 6 anos arrastado de carro por ladrões em fuga, a menina de 1 ano estuprada e morta dentro de uma igreja, os três franceses torturados e mortos por ex-meninos de rua que deviam a eles os seus estudos. Para debelar a barbárie, medidas anti-violência saíram das gavetas e foram aprovadas no Congresso. Mas o brasileiro se pergunta: é o suficiente? Ou o Estado mostrou-se incapaz de garantir a mais básica das necessidades de cidadão, seu direito à vida?

O governo, a seu lado, é responsável e tem mostrado ineficiência para solucionar o problema. Seria ingenuidade, no entanto, reduzir o debate sobre a persistência dessas cenas de horror apenas ao papel do Estado. Além das autoridades governamentais, filósofos e pesquisadores ouvidos pela Gazeta do Povo apontam para outras instâncias que têm influência sobre o problema: a escola e a família.

Essas duas instituições contribuem para que o indivíduo se convença a agir bem em sociedade. "O que está colocado para nós é exatamente como desenvolver uma cultura, um modo de vida, que garanta uma espécie de autocoação, uma forma de pensar ‘eu não posso fazer isso’, ‘eu não tenho direito de fazer isso’", define o advogado José dos Reis Santos Filho, professor de Filosofia e Sociologia da Universidade Estadual Paulista de Araraquara e pesquisador de indicadores de violência em crianças e adolescentes.

Consciência

A vida moderna, de acordo com Reis, criou não necessariamente uma "crise da família", mas um novo tipo de "ser família". Nesse contexto, os pais ainda estão despreparados para formar, com respeito à liberdade, os filhos diante de novos dilemas. Tanto nas mansões quanto nas favelas. A falta de uma base sólida não desenvolve a capacidade crítica das crianças e as torna reféns de influências negativas da sociedade.

"A família hoje tem muito menos poder do que as pessoas acham que ela tem. Existem jogos de influência na direção da criança e do adolescente, muito fortes, que é aquilo que se vê no clube, na arquibancada de futebol, na esquina, no grupo de identidade, etc. Chega ao ponto em que a criança e o adolescente se tornam absolutamente inconscientes do significado real daquilo que eles estão fazendo", avalia.

Os pais, nesse sentido, não estão conseguindo transmitir os mínimos pilares éticos."O que limita a atuação dos nossos instintos mais primitivos são exatamente esses modelos, pai, mãe, professor. Limitadores que permitem a vida em sociedade. Um grupo identificado por modelos saudáveis tende ao fortalecimento e amadurecimento", avalia o psiquiatra forense e clínico, Eduardo Henrique Teixeira, da Faculdade de Medicina da PUC-Campinas, autor de pesquisas sobre delitos, é preciso resgatar estruturas familiares.

A escola complementa esse processo ao cumprir o seu papel: instruir. Nesse sentido, Olgária Mattos, professora da Faculdade de Filosofia da USP e autora do livro sobre educação "Discretas Esperanças", faz uma alerta. Segundo ela, quando se fala em educação, a ideologia de que "é melhor dar pouco para muitos do que muito para poucos" não funciona e resulta em incivilidade e barbárie, além de ser tediosa e causar mal-estar. Ela defende uma batalha pela "alta escolaridade, para a consolidação de uma sociedade espiritualmente forte".

"No Brasil, a escola, desde seus primórdios, era um recurso para "combater a criminalidade". Não se tratou de projeto de nação ou de povo com uma identidade valorizada. A escola fica encarregada de retirar as crianças da rua e dar assistência social. Sobrepõem-se funções e nenhuma é realizada eficientemente. Pode ser que seja uma ilusão da filosofia, mas para ela a palavra, a educação, são barreiras contra a violência. Aprender exige paciência, concentração, suportar frustrações, adiar o prazer; isto é, ensinar a elaborar o nosso mundo interno", analisa.

O resultado das falhas na escola e na família resulta em uma certa indiferença sobre o tema, que se altera apenas nos casos mais desastrosos. "O que assusta mais é que essas catástrofes não provocam nenhuma postura mais interrogativa no grande público. As pessoas reivindicam medidas concretas que venham a resolver o problema por meio de leis, na construção de mais presídios, na colocação do Exército nas ruas. Agora eu não vejo ninguém questionar os motivos pelos quais a nossa civilização está gerando tanto delinqüência. Tentar descobrir por que indivíduo arrasta uma criança, sabendo que a está arrastando", alerta Edgar Lyra, professor de Filosofia da PUC-RJ e de Internacionais do Ibmec-RJ.

Estado

Quando se fala em inibidores exteriores contra a barbárie, é preciso voltar a falar do papel do Estado. Nunca antes se viu tanta pesquisa e projetos sobre a violência e, ao mesmo tempo, tão pouca eficácia das autoridades. A informação é do Relatório Nacional dos Direitos Humanos no Brasil, consolidado no Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, publicado na última sexta-feira. Pelo documento, a violação dos direitos fundamentais cresce no país.

"Um dos problemas é o despreparo técnico dos governos, federal, estadual e das polícias. Os cargos são loteados para pessoas sem preparação. Além disso, existem disputas políticas que quebram a continuidade de bons projetos de combate à violência", avalia Eduardo Manoel de Brito, pesquisador do NEV e um dos responsáveis pelo relatório.

Brito ressalta ainda a falta de "vontade política" de implementar soluções demonstrada na forma como são divulgadas as estatísticas públicas e também no combate tímido à corrupção nas polícias. "Alguns dados de órgãos públicos vêm todos mastigados. Falam, por exemplo, de quantidade de mortes, por diferentes motivos, sem a possibilidade de verificação. Fica óbvia a tentativa de maquiagem da realidade", insiste.

Sem falar da impunidade. O Brasil não precisa de novas leis, mas da aplicação delas, diz a maior parte dos especialistas. O que nem sempre ocorre. "Nos países desenvolvidos, os assassinatos são punidos com penas longas. No Brasil, há uma tradição da não-punição. Existe um problema antropológico, sim, mas não é bem o que diz respeito à "insociável sociabilidade" do homem, mas a um projeto inexistente de civilização no Brasil", finaliza Olgária Mattos.

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