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Estupro de SC: pais podem ser responsabilizados por omissão; jornal oculta dados relevantes
Site que publicou inicialmente o caso da menina de 11 anos vítima de estupro ocultou dados relevantes sobre os acontecimentos| Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Uma matéria jornalística que narrou inicialmente o caso da criança de 11 anos, vítima de estupro e grávida de sete meses, que teria sido mantida pela justiça de Santa Catarina em um abrigo longe da família para evitar que fizesse o aborto, levou à publicação de uma nota do Ministério Público Federal (MPF). Nela, o órgão recomendou que fosse procedida a retirada do feto - independentemente do período gestacional.

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A reportagem, publicada por um veículo pró-aborto nesta segunda-feira (20), gerou grande repercussão, comoção e fez com que diferentes atores políticos e entidades da sociedade civil se manifestassem pedindo que o aborto fosse feito com urgência. Diante da pressão, o hospital, que inicialmente havia se negado a realizar o procedimento alegando que as normas da instituição só permitem a realização do aborto até a 22ª semana, acabou cedendo e a "interrupção da gravidez" foi realizada nesta quinta-feira (23).

A reportagem, no entanto, omitiu um importante elemento da narrativa, que foi informado pelo delegado Alison da Costa Rocha, da Polícia Civil de Santa Catarina (PC-SC), responsável pela investigação do caso: a criança teria ficado grávida após ter relações com um adolescente de 13 anos. A Gazeta do Povo apurou também que o jovem é filho do padrasto dela e reside na mesma casa em que a menina morava. O pedido para o acolhimento institucional da criança, determinado pela juíza Joana Ribeiro Zimmer, partiu do Ministério Público de Santa Catarina (MP-SC) justamente para afastar a menina do risco de novos abusos. Apesar disso, em trecho da reportagem, há menção ao abrigo como um “cárcere”.

A ocultação de informações sobre o perfil do possível autor do ato sexual causa estranheza, uma vez que a matéria apresenta uma diversidade de pormenores do caso, com direito ao vazamento de dados sigilosos do processo, que corria em segredo de justiça. Além de não mencionar a provável participação de um menor, em vídeo editado pelo mesmo jornal, no qual são mostradas imagens da audiência, o veículo refere-se ao autor do ato sexual como um homem estuprador: “A criança também é questionada se o homem que a estuprou concordaria em entregar o bebê à adoção”, informa, antes de mostrar a cena.

Delegado diz que menores podem responder por ato infracional

Em entrevista à Gazeta do Povo, o delegado Alison da Costa Rocha afirmou que o ato sexual entre a menina e o adolescente que a engravidou não foi uma excepcionalidade, e o relacionamento afetivo entre os dois era mantido anteriormente à concepção.

De acordo com o artigo 217-A do Código Penal, a prática sexual com menores de 14 anos configura crime de estupro de vulnerável, com previsão de até 15 anos de prisão. Entretanto menores de idade são penalmente inimputáveis de acordo com a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Segundo a lei brasileira, delitos cometidos por menores de 18 anos resultam em ato infracional, o que não é equivalente a crime.

No momento, segundo o delegado, a polícia trabalha com duas possíveis conclusões para o caso. A primeira é ambos os menores responderem por ato infracional análogo ao estupro de vulnerável, de forma recíproca, caso se chegue à conclusão que os dois praticaram o ato de forma consentida.

Durante as investigações, segundo Rocha, foi identificado que a menina consentia e que em nenhum momento houve violência ou indução de forma unilateral para a prática do ato sexual. Mesmo assim, segundo a súmula 593 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), considera-se estupro de vulnerável como presunção absoluta, independentemente do envolvimento amoroso ou consentimento por parte da vítima.

A segunda hipótese de desfecho é que nenhum dos dois responda pelo ato infracional, aplicando-se a chamada “exceção de Romeu e Julieta”, que visa descriminalizar a conduta de adolescentes que possuem relações sexuais recíprocas. “Nesse caso, leva-se em consideração o envolvimento da vítima, o ‘namoro’, ou seja, o contexto concreto. E não haveria penalização pelo ato infracional, e sim outras medidas, como o acompanhamento psicológico, psicossocial”, explica o delegado.

Nesta semana o Ministério Público de Santa Catarina pediu novas diligências em relação ao caso, e após a finalização delas, haverá a conclusão definitiva da apuração policial. Nesta quinta-feira (23), foi coletado material genético do adolescente para confirmar a conclusão da investigação.

Ocorrência jurídica do estupro mediante os novos fatos

No Brasil, o aborto é considerado crime e está previsto no Código Penal no título que trata de crimes contra a vida. Há, no entanto, dois casos em que não há punição para quem pratica o aborto: quando o procedimento for feito para salvar a vida da gestante ou em caso de gravidez resultante de estupro, desde que assim a vítima deseje – ou, sendo menor de idade, mediante a autorização do responsável legal. Há ainda outra hipótese, que deriva de um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2012, no qual ficou estabelecido que não haverá punição em caso de aborto em gestação de feto anencéfalo.

Segundo o delegado, independentemente de a Justiça entender que a menina praticou o ato infracional, isso não impediria que houvesse a ressalva legal para o aborto. A delegada Patrícia Zimmermann D’Ávila, coordenadora da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, da PC-SC, também entende que houve estupro independente do contexto do caso.

"Toda a relação sexual feita com uma criança ou um adolescente que tenha menos de 14 anos, mesmo que aquela pessoa que praticou o ato sexual diga que quer ou pode praticar, a lei considera como crime de estupro porque o legislador entende que a menor ou o menor de 14 anos não tem autonomia para decidir e dizer 'pratico ou não pratico o ato sexual'", afirmou a delegada ao G1 nesta sexta-feira.

Por outro lado, Dário Júnior, doutor em Direito Processual, aponta que o alegado estupro cometido pelo adolescente juridicamente poderia não ser considerado como tal, invalidando a ressalva legal para a realização do aborto. “Sendo ele um adolescente de 13 anos, ele teria cometido um ato infracional equiparado ao estupro de vulnerável, mas ele também é considerado vulnerável. Se juridicamente ele não comete crime, nesse caso seria difícil atestar que a gravidez foi fruto de estupro, porque foi consensual e o autor foi um vulnerável”, explica.

Possível responsabilização dos pais dos menores

Conforme a avaliação de juristas ouvidos pela reportagem, caso fique comprovado que a mãe da criança e o pai do adolescente tinham conhecimento prévio de que os menores mantinham relações sexuais, seriam os pais que poderiam responder pelo crime de estupro de vulnerável, que figura no rol dos chamados “crimes hediondos”, ou seja, são inafiançáveis e insuscetíveis de graça, fiança, indulto ou anistia.

“A Constituição considera que devem responder pelo crime hediondo os mandantes, os executores e quem, podendo evitar a prática do crime, se omite em relação a eventuais condutas que caracterizam crime hediondo”, explica Geovane Marques, professor de Direito Penal e Processo Penal. “Ficando comprovado pela Justiça que os pais tinham conhecimento da prática do ato sexual entre eles - e nada fizeram -, é possível se arguir o instituto da omissão imprópria”.

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Conforme explica Dário Júnior, uma vez que pai e mãe são garantidores do bem-estar das crianças e adolescentes, diante da eventual conduta omissiva, no caso em questão, os pais seriam responsáveis pelo estupro por omissão dolosa.

Marques ressalta que, comprovada a responsabilidade dos pais, a própria autorização da mãe, como responsável legal pela menina, para que fosse feito o aborto estaria prejudicada. “Se os responsáveis legais pelo menor, que devem autorizar o procedimento abortivo, forem responsabilizados pela situação – ainda que a título de omissão imprópria – essa autorização eventualmente dada por eles seria considerada como viciada. Porque se lá na frente for constatado que eles são os responsáveis ou têm relação com o crime, o aborto já foi feito, e o fato se tornará irreversível”.

Site que publicou o caso já foi condenado por manipular dados de outro processo sigiloso

Essa não foi a primeira vez que o site de notícias que publicou originalmente o caso omitiu informações para dar repercussão a pautas políticas de seu interesse. Em 2020, o jornal publicou uma reportagem na qual foi citado falsamente que o rapaz acusado de estupro pela influenciadora Mariana Ferrer teria sido absolvido porque a Justiça considerou que ele cometeu um “estupro culposo” – tipo penal que não existe na legislação brasileira. A narrativa criada pelo veículo, que envolveu a manipulação do vídeo de uma audiência do caso, realizada em julho de 2020, na tentativa de mostrar que houve injustiças durante o ato, também gerou forte repercussão e comoção.

Posteriormente, uma decisão judicial determinou que o site retificasse a informação e esclarecesse que não houve menção ao termo na sentença, nas alegações finais e em nenhum outro momento do processo. O veículo também foi obrigado pela Justiça a revelar que manipulou o vídeo da audiência.

A matéria desta semana, que tem sido usada por favoráveis ao aborto para pressionar pela flexibilização do procedimento no país, foi publicada menos de duas semanas após o Ministério da Saúde ter publicado um documento direcionado a profissionais de saúde, serviços de saúde e a gestores públicos com normas técnicas para atendimento às mulheres em relação ao aborto. O documento foi duramente criticado não somente pelo jornal, mas também por um outro site de notícias de cunho feminista, que figura como coautor da reportagem.

O site feminista informa que tem como propósito “articular o engajamento feminista na construção de narrativas jornalísticas”. A advogada da mãe da criança é colunista do site. No portal, ela se define como “feminista, comunista e militante de Direitos Humanos”. Em um de seus artigos veiculados no site, ela narra que aos 22 anos fez um aborto. Ao mencionar o namorado, ela justifica o episódio: “Éramos jovens e queríamos curtir a vida livremente”.

A Gazeta do Povo tentou contato com a advogada, que preferiu não atender ao pedido de entrevista da reportagem.

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