• Carregando...

No dia 18 de fevereiro de 1987, os 400 lugares da Paróquia do Imaculado Coração de Maria, no Rebouças, não foram o bastante para a multidão que se reuniu para a missa de corpo presente do irmão Vitório Andreola – um sujeito bonachão que tratava todo mundo como conhecido de infância. Era mês de praia, mas parecia que metade do litoral tinha subido a serra para se despedir do camarada que ia deixar saudade no velho bairro industrial de Curitiba.

Para a outra metade, bastou subir a Rua Nunes Machado ou a Rua Westphalen e soltar o berreiro. As exéquias foram no estilo arranca-peito - uma daquelas cenas inacreditáveis que acontecem de vez em quando: centenas de vozes entoaram o hino preferido do religioso – "Com minha mãe estarei" – com a desenvoltura dos Meninos Cantores de Petrópolis.

Comparado com o velório de Getúlio Vargas ou Carmen Miranda, os funerais do irmão Vitório não passaram, como se diz, de um pequenino grão de areia. Mas ao se levar em conta os limites da Paróquia do Coração de Maria – um quadrado imperfeito de 86 quarteirões (veja quadro) – a cerimônia deixou claro que os missionários claretianos, congregação do religioso, eram gente de casa.

Os primeiros missionários, vindos da Espanha, chegaram a Curitiba em outubro de 1905 – há exatos cem anos. Ficaram um tempo na Água Verde, mas logo se mudaram para o chamado Campo da Cruz, onde está hoje a Praça Ouvidor Pardinho. A galope, foram assumindo aquele misto de um pouco de tudo que marcavam as igrejas, como escola e socorro dos necessitados. Como não só de pão vive o homem, a comunidade se tornou palco de uma galeria de personagens com os quais qualquer um esbarra ao tentar contar a história de Curitiba.

Ao mesmo tempo em que a pastoral do calor humano de Vitório e outros imperou nas divisas do Rebouças, fora do bairro alguns claretianos pisaram em terra de gigantes. São notáveis o cientista e padre Jesus Santiago Moure, mundialmente conhecido; e o teólogo e compositor José Penalva, morto em 2003. Tido como ortodoxo e temido nas aulas de Dogmática, no Studium Theologicum (faculdade de teologia ao lado da igreja, hoje com 105 estudantes), fez bonito na vanguarda na música erudita brasileira e faria compositores e instrumentistas tirarem o chapéu – caso chapéus ainda fossem usados.

A galeria claretiana é tamanha que, há dois anos, o atual vigário – padre Marcos Loro, 40 anos – numa atitude inédita contratou a equipe da historiadora Tatiana Dantas Marchette para organizar a documentação da casa, pondo o passado a limpo. O material formado por mapas, imagens alfaias, fotos e documentos agora compõe um pequeno museu, em anexo à paróquia, contrariando a regra geral de que ter acesso à documentação eclesiástica é mais difícil do que tirar visto para a Coréia do Norte.

Por ocasião do centenário, padre Marcos apelou para a memória outra vez, organizando uma espécie de "museu da pessoa", um inventário dos anônimos que trabalharam nas pastorais do Coração de Maria ao longo do século. O projeto bem serve para confirmar que a história da cidade passa pelos batistérios e salas de catequese. O caso da comunidade claretiana é um clássico. A paisagem de 2005 contrasta com as fotos do antigo Campo da Cruz. De território de missão, o local agora é vizinho da Ambev, do Clube Atlético Paranaense, de uma dezena de lojas de cozinha e de automóveis.

Nesse cenário cheio de som e fúria urbana, a operação resgate comandada por padre Loro acabou mostrando mais uma vez a que veio, graças à ajuda de uma pequena caravana formada por paroquianos, secretárias, zeladoras, bibliotecária. É o caso do ministro da Eucaristia Miguel Koteski, 73 anos. Ele começou a freqüentar a comunidade nos anos 70 e se engajou de tal forma que ele e sua mulher, Anita, dona de uma voz de encher catedrais, são abordados por paroquianos até quando fazem a feira.

O exército conta também com Mara Marcondes, 56 anos, cozinheira dos claretianos há 30 e menos conhecida fora dos muros. Ela um dia foi recebida na casa por ninguém menos do que o mítico Vitório Andreola, mestre-cuca do convento. "Ele não tinha preconceito. Para o irmão, todos eram iguais", diz, sobre a receita que valeu uma vida.

Serviço: Amanhã, às 10h30, missa do centenário da chegada dos missionários claretianos em Curitiba. Paróquia do Coração de Maria (Av. Getúlio Vargas, 1.193).

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]