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Um museu no fundo de casa

A mulher do professor de História Benno Wagner, 85 anos, não gostou muito da idéia de ter um museu dentro de casa. Mas lá se vão 15 anos desde as primeiras aquisições, tempo em que o museu Rumos – instalado num pequeno barracão, numa rua enviesada entre o Pinheirinho e a BR-476 – ganhou um acervo de mil peças, todas etiquetadas, a maioria delas formada por objetos relacionados à imigração.

Sem apoio de ninguém, sem verba e guiado pela intuição, Benno transformou a coleção numa espécie de acervo da vida privada. Há ali ferro de marcar escravos, mas também discos de Teixeirinha e Mary Terezinha; um caixote de bagagem oriundo da Ucrânia há mais de um século e estatuetas de gesso com o busto do presidente Kennedy. Sem falar em incríveis máquinas de costurar à manivela. E num nostálgico retrato de Janis Joplin. "Os objetos ajudam a contar minhas histórias", comenta Wagner.

Não bastasse sua originalidade, o museu funciona como uma espécie de banco de imagens para seu idealizador. Cada objeto tem uma história, que ele sistematicamente registra em livros, datilografados numa velha Lettera. Benno está revisando as provas do seu décimo volume de memórias, todos editados às suas próprias expensas. "Virei um jornalista", brinca. O antropólogo Ozanam de Souza entendeu tão bem o recado que incluiu o raro museu no tombamento de cultura imaterial da periferia.

O estudante de Teologia Cleverson Paes Pacheco, é grafiteiro no Sítio Cercado e membro do coletivo Utopia Art Style. Figura entre os artistas mais disputados de sua região. Basta aparecer um muro branco para que se peça os préstimos do Café – nome pelo qual Cleverson é conhecido. O professor de História Benno Wagner, montou um museu de objetos domésticos nos fundos de sua casa, no Pinheirinho. São mil peças capazes de fazer saltar os olhos de escolares que fazem fila para visitar o espaço. A jornalista Lucília Guimarães, é mãe-de-santo no Terreiro Pai Maneco, no bairro Santa Cândida. Cerca de mil pessoas por semana freqüentam o local. E a benzedeira Genoveva Huk, tem de dispensar as levas de gente que pedem reza na porta de sua casa – no Alto Boqueirão.

Até pouco mais de um ano, a atividade de Cleverson, Benno, Lucília e Genoveva não aparecia em nenhum levantamento oficial sobre hábitos e costumes da gente da capital. Para o poder público, não eram nem cultura, nem arte ou coisa que valha, apesar de o povo reconhecer como tal. Até que numa iniciativa inédita, uma pequena equipe da Fundação Cultural de Curitiba (FCC) decidiu ir a campo e bater de porta em porta atrás de manifestações tradicionais, religiosas, musicais, folclóricas e urbanas. A única pista que os expedicionários tinham em mãos eram os relatórios fornecidos pelas regionais da prefeitura e Ruas da Cidadania. "Onde falavam que tinha uma roda de sanfona a gente ia atrás", conta o líder da equipe, o antropólogo Ozanam de Souza, 42 anos.

Sabia-se até então da existência de uma roda de viola ali, de uma rezadeira acolá. Com faro, bloquinho de anotação e disposição para entrevistas de até duas horas com cada agente cultural desconhecido, o time catalogou 450 manifestações – a maior parte delas na zona sul de Curitiba, a primeira a ser visitada. Ano que vem o time parte para a zona norte. Quando as duas etapas da força-tarefa estiverem concluídas a capital do estado vai ter um documento inédito em mãos, passível de ser consultado por educadores, gestores, empresários e a quem mais interessar a cultura como uma das mais preciosas fontes de informação de uma cidade.

Infelizmente, é raro a cultura ser usada como fonte de planejamento urbano e de políticas públicas – mesmo que reúnam 3 mil pessoas num estalar de dedos, o que de fato acontece. Embora se papagueie aos quatro ventos sua necessidade e importância, não se sabe muito bem como utilizar os dados levantados. A razão desse descompasso é a crença de que a população – particularmente a de baixa renda e moradora de áreas de grande adensamento – está preocupada apenas com saúde, saneamento, creche, transporte e capacitação profissional, relegando a cultura a um gênero de segunda necessidade. Esse argumento, contudo, não resiste a um bate-papo de esquina em qualquer periferia de Curitiba. Ali, a reivindicação por asfalto é tão comum quanto o pedido por mais espaços de lazer e entretenimento.

A pesquisa da FCC explica porque pessoas que vivem às voltas com problemas graves de segurança e de infra-estrutura, por exemplo, costumam estar dispostas a fazer passeata para reivindicar uma praça. As periferias da zona sul são formadas basicamente por paranaenses do interior. As levas que se mudaram para Curitiba, principalmente a partir da década de 70, fizeram dos seus bairros extensões da cidade pequena onde nasceram, primando pela conversa de portão, relações de vizinhança e espontaneidade na hora de festear. Sem falar que evitam pegar ônibus nos fins de semana – já o fazem a semana inteira. Longe do Centro, criam suas próprias divisas – incluindo as culturais.

Daí a informalidade das 450 manifestações registradas até agora por Ozanam e sua trupe. "O morador da periferia não se preocupa com o espaço para a cultura. A sala de espetáculo pode ser um bar ou um quintal", exemplifica. Essa característica é tão forte que coloca na parede o próprio poder público, ainda fortemente organizado em torno das linguagens clássicas, praticadas em espaços convencionais. "Pensamos em montar endereços para a cultura na periferia, mas nos deparamos com um dúvida: será que esses espaços já não existem?", comenta o diretor de Ação Cultural da FCC, o ator e pesquisador Beto Lanza, 39 anos.

Outra característica é a variedade. Na Curitiba que cresce pelas bordas convivem tanto manifestações antiquíssimas, como as rezadeiras e benzedeiras; terreiros de umbanda – cuja tônica é ser anárquico, democrático e absolutamente musical –; e o arrastão da cultura hip-hop. Some-se a esse mosaico a existência de manifestações estranhas a Curitiba apinhada de descendentes de eslavos e germânicos. É o caso da lusitana Folia de Reis – uma verdadeira instituição do Bairro Novo, onde é praticada há 20 anos. Para Ozanam, provavelmente a festa foi trazida por migrantes de raízes mineiras, que existem aos borbotões no Norte do estado. Sem falar no carnaval, que reúne 18 mil foliões na Fazendinha. Quem foi mesmo que disse que Curitiba não se dá com o Momo?

"É fantástico. O projeto acabou mostrando o conjunto de expressões que formam o cenário da cidade. É um mundo que a própria capital desconhece. Estamos descobrindo nossa geografia cultural – uma geografia que permite a música caipira e o hip-hop no mesmo local", festeja Lanza.

Serviço: O antropólogo Ozanam de Souza apresenta hoje, às 10h30, no Parque São Lourenço (Rua Mateus Leme, 4.700), o resultado da pesquisa de cultura imaterial de Curitiba. Também participam do encontro a fotógrafa Lina Faria, a especialista Márcia Scholz de Andrade Kersten e o grupo Boizinho Faceiro. Entrada franca.

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