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Dona Pompília nunca admitiu uma mentira, por mais inocente que fosse. Seu lema – "a verdade acima de tudo, mesmo que contra si próprio" – valia também para as coisas do Natal e, por força dessa convicção, se opunha ao costume de iludir uma criança com o mito de Papai Noel. Como ela, que repudiava qualquer tipo de mistificação, iria aceitar essa imposição a uma criança ainda em formação? Quais conceitos ou valores validam a mentira nesses casos? Igual a toda criança, a filha dela, Liamir, sonhava com essa data, fazia jogos de adivinhações sobre o que o bom velhinho traria. Mas algo aconteceria no Natal de 1929. A menina tinha então 6 anos.

Já perto da data, uma coleguinha da escola perguntou se Liamir gostou do patinete que o pai comprara. Ela estranhou, pois não ga­­nhara nada. Ao indagar o porquê, a amiga contou que estava com a mãe na loja Alberto Veiga, em Pa­­ranaguá, onde moravam, quando o pai dela comprou o brinquedo. Liamir não se prendeu àquela in­­for­­mação e, já sem se lembrar do episódio, pouco antes do Natal perguntou à mãe como o Papai Noel, gordo como era, conseguia passar pela chaminé, e ainda com aquele enorme saco de brinquedos. De­­pois de outras perguntas desse ti­­po, inclusive sobre o tal patinete, não querendo protelar a farsa a mãe falou:

– Liamir, você é muito inteligente e esclarecida para sua idade e eu nunca menti para ninguém, muito menos para uma criança. Vou contar tudo, pois com o passar do tempo os efeitos negativos se acentuam e a realidade será mais dolorosa.

Antes, porém, mãe pediu a ela que não contasse às coleguinhas nada do que escutasse, pois cada família tem o seu modo de ser e agir, transmitindo aos filhos o que considera mais adequado. E se pôs a explicar sobre aquilo que Liamir já tinha certa desconfiança. Come­­çou a falar sobre o nascimento do menino Jesus, sobre presépios, reis magos e tudo o mais relacionado às questões natalinas. Quanto aos presentes, falou que eram os pais que compravam e, na véspera do grande dia, colocavam os belos embrulhos sob a árvore decorada.

Liamir achou positivo tudo o que ouviu, especialmente antes do Natal, pois na hora de receber os presentes lá estava o patinete e, não fosse a explicação da mãe, iria acreditar que tudo fora trazido pelo bom velhinho e não pelo seu velho pai, Dario. Já crescida, até imaginava que tivesse tirado tudo de letra, sem qualquer frustração, mas ao encarar a realidade verificou que ela é sempre mais dura do que o sonho e a fantasia. "Até hoje essa data não só me desagrada como causa certo mal-estar. Nunca alimentei esse mito em família, não costumo enfeitar pinheiro e quanto aos presentes dos meu filhos, desde pequenos cada um escolhe o seu", diz.

Essa preocupação nunca lhe saiu da cabeça. Tanto que, já casada e com filhos, isso ainda lhe consumia. A sogra morava de frente para a Praça Carlos Gomes, em Curitiba, e Liamir costumava levar as crianças à tarde para brincar sob as sombras dos eucaliptos australianos que seu tetravô, Maurício Lee Swain, plantou para ajudar na drenagem do solo pantanoso. Aproveitava as tardes para ouvir as mocinhas que ali acompanhavam as crianças. Colheu interessantes relatos de suas impressões sobre o mito do Natal. Em todas, sentiu mágoa, frustração, traumas, alguma considerou o fato como a destruição de sua infância, da qual nada restou.

Entre tantas, uma declaração chamou atenção. A menina era órfã, tinha uns 17 anos e vivia praticamente da caridade alheia, e na ocasião acompanhava crianças das quais era babá. Como tal, convivia com meninas da mesma idade para as quais a sorte costumava sorrir. Tinha uma cabecinha ainda infantil e não conseguia compreender o porquê de tantas injustiças e diferenças sociais. Ao falar sobre o Natal, Liamir percebia sua voz ficar embargada. Achava que o bom velhinho só presenteava os ricos, fossem travessos ou malcriados. Esses, sempre enfeitados com roupas bonitas, jamais eram esquecidos, recebendo os mais belos presentes. Disse ela a Liamir:

– De que vale ser uma boa menina, sempre ajudando a todos de graça ou a troco de migalhas? Mesmo assim, nunca perdi as esperanças de que um dia Papai Noel reconhecesse minhas qualidades e trouxesse ao menos uma bruxinha de pano para mim. Que nada. Nova decepção e a certeza de que ele não gostava mesmo de pobres.

Para Liamir, a esperança dessa menina teve como base uma grande mentira disfarçada de mito. Antes de encerrar a conversa, a garota falou que ao se inteirar da verdade sentiu um enorme prazer ao saber que eram os pais que presenteavam os filhos. "Foi então que afirmou que sua mágoa toda desaparecera e sua maior tristeza e desgosto fora ter perdido os pais tão cedo, única riqueza na vida de menina pobre", lembra Liamir.

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