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Lei seca | Daniel Castellano/ Gazeta do Povo
Lei seca| Foto: Daniel Castellano/ Gazeta do Povo
  • Segundo pesquisa do Ministério da Saúde, 19,2% dos curitibanos são fumantes
  • Enem

O ano de 2009 foi marcado por polêmicas nas áreas de educação, saúde e trânsito, tais como a adoção do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como um dos critérios de classificação no vestibular – o exame acabou cancelado e remarcado depois do vazamento das questões –, a eficiência da chamada lei seca para punir motoristas alcoolizados e a adoção de normas que proibam o fumo em ambientes fechados de uso coletivo. A Gazeta do Povo entrevistou representantes do poder público e da sociedade civil que manifestaram opiniões favoráveis e contrárias a cada um desses assuntos.

No dia 31 de março, o Mi­­­nistério da Educação (MEC) anunciou a proposta de reformulação do Enem para que ele possa substituir os vestibulares das universidades federais. O novo exame estaria aberto à adesão de outras instituições de ensino superior, incluindo as estaduais e particulares. Embora tenha sido recebida com entusiasmo por alguns setores, a proposta foi rechaçada por críticos, que veem incompatibilidades entre o modelo do Enem e as características dos concursos vestibulares.

Um ano depois da implantação da chamada lei seca, que estabeleceu punições mais severas para os motoristas alcoolizados, a medida se revela inócua na grande maioria dos casos. Levantamento publicado pela Gazeta do Povo mostrou que mais de 80% dos motoristas que se recusaram a fazer o teste do bafômetro ou o exame de dosagem alcoólica do sangue foram absolvidos nos tribunais estaduais. Instâncias superiores – o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça – ainda não se pronunciaram.

Em 2009, vários estados e municípios brasileiros adotaram leis que proíbem o fumo em locais fechados de uso coletivo, extinguindo as áreas reservadas a fumantes, os chamados "fumódromos". Em Curitiba, a lei municipal entrou em vigor no dia 19 de novembro. Dez dias depois, norma estadual semelhante começou a valer em todo o Paraná. Comemorada pelas autoridades de saúde e bem recebida pela população em geral, a medida foi criticada por entidades de classe que representam bares e casas noturnas.

Confira as opiniões contrárias e favoráveis ouvidas pela reportagem.

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Lei Seca

Rosangela Gaspari, promotora de Justiça do Ministério Público do Paraná.

A lei seca é eficaz para punir os motoristas alcoolizados?

Da forma como vem sendo interpretada pelos tribunais estaduais e até mesmo pelo STF, não. Há grande discussão jurídica acerca da imprescindibilidade ou não de que a prova do crime seja feita exclusivamente por testes que comprovem o teor alcoólico. Temos defendido que diante de recusa a fazer os exames, desde que o motorista apresente de forma evidente os sinais de intoxicação, será plenamente possível a comprovação de que o teor de álcool no sangue é superior aos 6 decigramas por litro. No primeiro ano de vigência da lei seca, os tribunais estaduais absolveram 80% dos motoristas que se recusaram a fazer o teste do bafômetro ou exames de sangue.

Nas instâncias superiores isso poderá mudar?

Temos trabalhado para isso. O Centro de Apoio às Promotorias de Justiça Criminais, do Júri e de Execuções Penais vem recorrendo, reiteradamente, das decisões de absolvição resultante da ausência de prova técnica.

O Congresso estuda incluir no Código de Trânsito, de forma expressa, a punição aos motoristas que se recusem a fazer exames de dosagem alcoólica. A senhora concorda?

Se a lei for alterada, retirando das elementares do tipo penal o quantum do teor alcoólico (6 decigramas por litro de sangue), não haverá discussão acerca da indispensabilidade ou não da realização de bafômetro. De qualquer forma, o Código já prevê aplicação de penalidades ao condutor que se recusar a fazer testes de alcoolemia, dentre as quais a suspensão do direito de dirigir por 12 meses.

Aldo de Campos Costa, advogado.

Quais são os buracos da lei?

A nova redação do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) passou a exigir a verificação exata da concentração de álcool no sangue. A lei já não pune mais a embriaguez, e sim o excesso de alcoolemia. A diferença é que, enquanto o estado de embriaguez pode ser atestado por simples testemunho ou exame clínico, a concentração de álcool só pode ser aferida por exames técnico-científicos, o que causa perplexidade quando a Justiça absolve ou arquiva os processos contra os que deixam de fazer o teste do bafômetro ou exame de sangue.

A impunidade acaba prevalecendo?

Hoje o motorista só será punido caso queira. Basta não soprar o bafômetro, nem ceder sangue para o exame de alcoolemia.

Quais seriam as alterações necessárias na lei?

Introduzir um dispositivo semelhante ao usado na Alemanha, que autoriza a extração de material sanguíneo e outras intervenções corporais sem a autorização do acusado, ou criminalizar a recusa em se submeter aos testes de alcoolemia como crime de desobediência, como se faz na Espanha.

O senhor concorda com a proposta de mudança em discussão na Câmara dos Deputados?

O projeto propõe a punição do condutor que, apresentando "sinais notórios de embriaguez, ponha em perigo a segurança própria ou de outrem ainda que não seja possível determinar a concentração de álcool". Na prática, volta-se a punir a embriaguez, e não o excesso de alcoolemia. O texto é criticável tanto por pressupor que a autoridade de trânsito tem condições de avaliar um estado clínico para o qual não está preparada, quanto por justificar a coerção do cidadão.

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Lei antifumo

Jonatas Reichert, pneumologista do Hospital Nossa Senhora das Graças, de Curitiba.

O senhor acredita que as novas leis antifumo são eficazes para reduzir os males causados pelo tabagismo?

Sim, à medida que se restringe o fumo em locais públicos e privados, as pessoas de boa consciência e responsáveis lembrarão com mais frequência dos riscos do tabagismo próprio e o que poderão ocasionar às pessoas próximas. A não exposição ao risco evitará adoecimento e morte. O fator proibitivo e disciplinador da lei traz maior força para isto.

As leis são suficientes, ou é preciso haver medidas complementares?

Medidas complementares reforçam a ação, pois o dependente é doente e necessita de orientação especializada na maioria das vezes. Em cada contato profissional, uma abordagem breve de apenas 3 minutos tem colaborado para aumentar a motivação para cessar o tabagismo.

Quem é mais beneficiado com a lei, o fumante passivo ou os que só fumam quando ingerem bebidas alcoólicas?

Ambos. No entanto, o efeito mais imediato é observado entre os fumantes passivos. A Poluição Tabagística Ambiental (PTA) se faz às custas dos produtos liberados do tabaco durante a sua combustão. A nicotina – alcalóide responsável pela dependência – é metabolizada no organismo, gerando quatro nitrosaminas, com alto poder cancerígeno. O ambiente 100% livre do tabaco impede a exposição maléfica e desnecessária.

A lei poderá estimular os fumantes a se livrar definitivamente do cigarro?

Sim. A observância da lei mantém presente a lembrança dos riscos de se adquirir uma das 56 doenças tabaco-relacionadas.

Laércio Lopes de Araújo, médico psiquiatra, mestre em Filosofia e acadêmico de Direito.

Não é um contrassenso o senhor, como médico, se opor à legislação?

Não se pode ficar a favor de medidas que tentam esterilizar a sociedade, fazendo com que o desejo da maioria se estabeleça de maneira perigosamente ditatorial sobre todos. Não sou fumante, acredito que o cigarro seja algo negativo, mas a educação, o tratamento e as advertências existem para fazer com que as pessoas assumam o compromisso com sua saúde e com a saúde de todos. A lei como está trata o cidadão como um anão moral, como se ele fosse incapaz de assumir a sua vontade e seus riscos.

O senhor vê algum ponto positivo na legislação antitabaco?

As pessoas estão fazendo das calçadas e vias públicas locais de intercâmbio social. O lado de fora dos bares está até mais animado que o seu interior. Se a lei permitisse espaços reservados aos fumantes, e não penalizasse o empresário, mas o fumante pelo desrespeito do espaço a ele reservado, eu apoiaria e aplaudiria a lei. Como ela está, é mais uma manifestação da soberba dos políticos que pensam saber o que é bom para o cidadão.

Na sua opinião, quais seriam as melhores medidas para desestimular o uso do tabaco?

Educação, estímulo aos esportes, programas inteligentes veiculados na mídia para jovens e também, obviamente, os instrumentos tributários. Tornando-o mais caro e mais difícil de ser encontrado, você desestimula o consumo; fazendo inserções na tevê estimulando a vida saudável, você estará vencendo a batalha. Quem não fuma é mais cheiroso e tem a pele mais jovem; sobra mais dinheiro no fim do mês. Esses apelos podem ser trabalhados.

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Enem

Mário Sérgio de Andrade, presidente da União Paranaense de Estudantes Secundaristas (Upes).

O Enem contribui de alguma forma para democratizar o acesso ao ensino superior?

Achamos que sim. A mudança vai tirar aquele modelo viciado de vestibular baseado no que o aluno aprendeu, que avalia em uma prova de três horas o que o aluno aprendeu em três anos. Além de não avaliar a capacidade de elaboração do candidato, o atual sistema não é democrático.

Por quê?

Porque ele é excludente: beneficia os alunos que estudaram a vida toda em escola particular. Temos aí uma contradição: quem pode pagar pela escola particular acaba conquistando as vagas na universidade pública. Mesmo entre os estudantes de escola pública que ingressam na universidade pelo sistema de cotas sociais, os aprovados acabam sendo aqueles que frequentaram os cursinhos pré-vestibulares.

Qual a diferença do Enem em relação aos vestibulares tradicionais?

O modelo do Enem é diferente. Ele avalia o senso crítico, o raciocínio, a capacidade de elaboração do aluno, por isso é uma forma mais justa de avaliação. Vemos isso como um avanço, que só tende a melhorar. O aluno tem de ser avaliado pelo que aprendeu, não pelo que conseguiu decorar. A Upes apoia a mudança e quer pôr a questão em debate nas escolas, porque não adianta apenas a entidade aprovar; tem de haver discussão.

Mas o exame deve ser usado do jeito que está, ou são necessárias mudanças?

Temos de avaliar esta primeira experiência. Vamos ver se o resultado será negativo ou positivo, se serão necessários ajustes. Ainda temos de avançar muito para garantir o acesso à universidade para todo mundo, mas temos esperança. Não há dúvida de que a prova vai contribuir para a universalização do ensino superior.

André Ordacgy, defensor federal da Defensoria Pública da União no Rio de Janeiro.

Que motivos levaram o senhor a se opor à adoção do Enem no vestibular?

Percebe-se uma pressão do governo sobre as universidades públicas para usarem o Enem como critério para o vestibular. Não haveria problema nisso, desde que fosse feito de forma planejada e não às pressas. O exame se destina a avaliar o desempenho do aluno no ensino médio. A nota é sigilosa, para que o aluno não seja segregado no mercado de trabalho. Mas, com a conivência dos reitores, o governo ignorou princípios do Estado democrático de direito.

Que princípios?

A UFRJ decidiu usar o Enem como primeira fase do vestibular. Os melhores classificados vão à segunda fase, mas a divulgação só traz a relação nominal dos classificados, sem nota nenhuma. Isso fere os princípios da legalidade e transparência. Qualquer concurso público se guia pelas notas, o candidato tem o direito de saber a sua nota e a dos aprovados.

Como o governo vai resolver esse dilema?

Não sei. O Enem não foi criado para isso, não pode ser transformado em vestibular de forma açodada. Isso vai contra outro princípio do Enem, o da voluntariedade, pois ele passa a ser obrigatório para o acesso ao ensino superior.

Isso tudo levou o senhor a ajuizar a ação?

Não restou alternativa. A Universidade Federal Fluminense (UFF), de Niterói, faria um modelo parecido com o da UFRJ, mas retirou o Enem da primeira fase e passou a usar o exame como critério de bônus. O estudante aprovado no Enem ganha pontos, o egresso de escola pública aprovado ganha mais pontos. É um critério de inclusão social.

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