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Quem matar alguém no Brasil tem nove chances de ficar impune, contra uma única possibilidade de ser pego. A alta taxa de impunidade decorre do mísero índice de 8% de solução dos homicídios. Ou seja, 36 mil assassinatos cometidos por ano no país são simplesmente arquivados. Já em Curitiba, as chances do homicida escapar ileso caem para oito em 10, não que isso represente grande avanço. Na capital do Paraná, 1.943, ou 45%, dos 4.327 inquéritos abertos desde o ano 2000 para investigar crimes contra a vida jamais serão esclarecidos porque a polícia sequer identificou o suspeito. No mesmo período, apenas 884 casos foram a júri popular, com 712 condenações.

Na média curitibana, para cada homicídio elucidado há outro de autoria ignorada. Esta é a principal causa do aumento dos crimes insolúveis, mas não a única. Outros fatores favorecem a impunidade. A identificação de um acusado, por exemplo, não significa que ele será preso. E, mesmo detido, o caminho até o julgamento é cheio de recursos. "No Brasil, solta-se demais e prende-se de menos", diz o desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná João Kopytowski. Para ele, a explicação é tão cristalina quanto a água: "A lei é branda e o Judiciário, mais ainda". Mas tanta brandura muitas vezes decorre de um vício de origem: a falta de provas do crime.

Rastros

É voz corrente no meio policial que não existe crime perfeito. Algum rastro o assassino sempre deixa. Seria este o primeiro passo para a identificação do suspeito, não fosse o descuido daqueles que deveriam investigar. Falta à polícia brasileira a cultura de isolar a cena do crime para preservar as provas. Segundo um delegado que prefere não se identificar, os policiais militares atrapalham ao mexer nas provas e não isolar o local. Isso é mais comum nos bolsões de pobreza, justamente onde acontece a maioria dos homicídios. O assassinato de Keila Cristina Vaz, na madrugada de 28 de janeiro, na Rodovia dos Minérios, é só mais um exemplo do desleixo policial.

Keila foi morta com facadas no abdôme e uma no pescoço. O corpo estava dentro de um riacho às margens da rodovia de acesso a Almirante Tamandaré. No local, a reportagem da Gazeta do Povo foi orientada pelos policiais militares a "seguir os curiosos". Havia pelo menos 50 desses "curiosos" andando em várias trilhas no meio do mato e destruindo possíveis provas. Quem retirou o corpo do riacho foi o motorista do Instituto Médico-Legal (IML) com ajuda de um morador da região. Até hoje não se sabe quem matou Keila, nem os motivos do crime. Um investigador de polícia confidenciou que são tantos os homicídios que fica difícil dar atenção a todos eles.

Proporção

Como se vê, a polícia também tem problema com números. O Paraná possui um policial civil para cada grupo de 2.500 habitantes. O Distrito Federal, por exemplo, tem um para 453 pessoas. Somandos os policiais civis, militares e científicos, o estado tem um policial para 423 habitantes, enquanto em São Paulo e Rio de Janeiro a média é de 316,9 e 248,5, respectivamente. O Paraná dispõe de 144 peritos criminais, 90 deles em Curitiba. Desses, 30 estão prestes a de aposentar. Para o chefe da divisão técnica de criminalística do interior, Marco Pimpão, a falta de pessoal atrapalha o trabalho. Este ano haverá concurso, mas serão apenas oito vagas para todo o estado.

O desembargador aponta a escassez de policiais e delegados como entrave à solução de homicídios. Mas a Secretaria de Segurança Pública (Sesp) recorre a um trabalho do Núcleo de Estudos da Violência da USP para argumentar que ter mais policiais não reduz, necessariamente, o índice de criminalidade nem aumenta a elucidação de crimes. "Geralmente, os crimes são resolvidos porque os criminosos são presos em flagrante ou alguém os identifica por meio de um nome, placa de carro ou endereço. Os estudos indicam que a proteção deve ser fornecida pelo próprio cidadão e que sua ajuda é fundamental para a punição dos que o lesaram", diz o estudo.

Segundo a Sesp, isso se comprova na experiência da Delegacia de Homicídios de Curitiba. Cerca de 70% dos assassinatos na região metropolitana de Curitiba teriam relação com o tráfico de drogas, e um terço deles é elucidado pela polícia, inclusive com prisões. Não é bem isso que dizem os dados colhidos pelo Centro de Apoio Operacional das Promotorias do Júri na Vara de Inquéritos Policiais. Dos 4.327 inquéritos abertos nos últimos seis anos em Curitiba, 45% não têm sequer autoria conhecida. Os 884 casos que foram a júri perfazem 20% desse total. É o dobro da média nacional, mas não é motivo para comemoração, já que para cada dez casos apenas dois são concluídos.

Omissão

Enquanto elogia o feito da Delegacia de Homicídios, a Sesp enfatiza que seu desempenho só não é melhor por causa da omissão das testemunhas que, por medo, preferem não colaborar com a polícia. É dos grotões que vem mais este empecilho à solução dos crimes. Nestas comunidades, testemunha de homicídio prefere não aparecer. O medo estabelece o silêncio por causa da proximidade com o matador, constata o promotor público Paulo Sérgio Markowicz de Lima, com experiência em mais de 120 julgamentos. O antiquado Código Penal brasileiro, de 1940, também tem culpa neste cartório.

O velho CP impõe à testemunha três interrogatórios: um na delegacia, outro ao juiz e mais um ao tribunal do júri. "Isto desgasta e desacretida", diz Kopytowski. Daí, uma nova e triste constatação: passa-se o tempo, e o tempo enfraquece as provas, seja pela força do dinheiro, pelo temor ou pela perda da memória. O desembargador acredita que esse tempo poderia ser encurtado. Hoje, os homicídios vão parar nas 11 varas criminais de Curitiba, onde se misturam a outros crimes, como furto e roubo. O Código de Organização e Divisão Judiciária determina, desde 2003, que estes casos sigam direto para os dois tribunais do júri, o que ainda não acontece.

Esse conjunto de idiossincrasias que forjam a anatomia de um crime insolúvel faz do Brasil um país de papel inverso ao dos Estados Unidos e da Inglaterra, onde, em média, 90% dos homicídios são solucionados, com punição do autor.

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