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O vereador Renato Freitas (PT) durante manifestação no interior da Igreja do Rosário.
O vereador Renato Freitas (PT) durante manifestação no interior da Igreja do Rosário.| Foto: Malik Fotografia/Mandato Renato Freitas

Para restabelecer o mandato do vereador de Curitiba Renato Freitas (PT), cassado após invadir uma igreja em Curitiba, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), teve de fazer um malabarismo jurídico e contrariar suas próprias visões em julgamentos passados. Em sua decisão, o magistrado ainda apelou à tese do racismo estrutural – isto é, à ideia de que nossa sociedade foi estruturada com base na discriminação racial.

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Em 5 de fevereiro, Freitas participou de uma invasão da Igreja Nossa Senhora do Rosário, em Curitiba, logo após uma missa. Dezenas de pessoas de seu grupo, com bandeiras do PT e do PCB, entraram à força no templo e começaram a gritar palavras como "racistas" e "fascistas", dirigidas aos católicos. Antes, o grupo atrapalhou a celebração com gritos na escadaria da Igreja, o que obrigou o padre Luiz Haas a rezar a liturgia às pressas.

Depois de o vereador ser cassado na Câmara Municipal por perda de decoro parlamentar, em 22 de junho, a defesa, que não admite existir ilícito e sustenta a tese de “racismo estrutural”, recorreu ao STF. Em uma decisão em que muda a forma como votou no passado em situações similares, Barroso, relator do caso, acatou o argumento da defesa de Freitas de que o processo de cassação não seria válido por ter extrapolado o prazo de 90 dias.

Ainda que o mérito da infração não estivesse sendo julgado, o ministro aproveitou a decisão para dar sua visão sobre o caso. Na interpretação de Barroso, o ato de perturbar cerimônia ou prática de culto religioso – previsto como crime no artigo 208 do Código Penal brasileiro – pode ser descrito como “liberdade de expressão de grupos minoritários em manifestações críticas”.

O magistrado ainda sugeriu que a punição ao vereador poderia ser uma injustiça fruto de "racismo estrutural". "É impossível dissociar a cassação do mandato do pano de fundo do racismo estrutural da sociedade brasileira", afirmou o ministro na decisão. "Talvez não por acaso, o protesto pacífico em favor de vidas negras, feito pelo vereador reclamante dentro de igreja, motivou a primeira cassação de mandato na história da Câmara Municipal de Curitiba”, complementou, insinuando que os parlamentares que cassaram o mandato de Freitas teriam uma motivação racista como pano de fundo.

Quebra de decoro é de responsabilidade de julgamento do município  

Apesar do discurso ideológico de Barroso, o fundamento da decisão foi uma questão de caráter técnico envolvendo um conflito de entendimentos sobre os prazos previstos em lei para a duração de processos de cassação. Para juristas consultados pela Gazeta do Povo, o ministro acatou uma interpretação equivocada das leis que versam sobre o tema.

Uma lei federal da época da ditadura militar prevê uma duração máxima de 90 dias corridos (art. 5º, VII, do Decreto-Lei nº 201/1967) para o processo de cassação. Já o Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara Municipal de Curitiba estabelece 90 dias úteis, prorrogáveis no mesmo período.

A representação pela cassação foi admitida pela Mesa da Câmara de Vereadores em 10 de fevereiro deste ano. Já o julgamento foi concluído apenas em 5 de agosto e a resolução da perda do mandato em 8 de agosto. Com isso, foram mais de 90 dias corridos para a decisão final.

Para dar a liminar favorável a Freitas, Barroso afirmou que haveria “plausibilidade jurídica” para adotar a lei federal e não a regra estabelecida na Câmara Municipal. A determinação contraria decisões anteriores do próprio Barroso (leia mais aqui).

O advogado especialista em Direito Constitucional Acácio Miranda explica que a lei citada pela defesa de Freitas e por Barroso, o Decreto-Lei nº 201/1967, prevê que os crimes de responsabilidade de prefeitos sejam julgados pelo Poder Judiciário, sem citar os vereadores. Já nos artigos quarto e sétimo, respectivamente, estabelece que as infrações político-administrativas de prefeitos e vereadores estão sujeitas ao julgamento pela Câmara dos Vereadores, com possibilidade de cassação do mandato.

No caso de Freitas, a cassação se deu por quebra de decoro parlamentar, uma infração político-administrativa - o Conselho de Ética da Casa afastou as denúncias de invasão da igreja e de interrupção de culto religioso. Ou seja, para fundamentar a decisão (e driblar entendimentos anteriores) Barroso utilizou para o vereador a lei federal destinada a prefeitos, sem diferenciar crime de responsabilidade de infração político-administrativa.

“O Barroso fez [isso] muito mais pelo clamor das circunstâncias, dado que o caso foi amplamente divulgado no noticiário, do que com base em aspectos jurídicos”, afirma Miranda. “No caso das infrações político-administrativas, como é o caso do vereador de Curitiba, cabe ao próprio município regulamentar”, diz o advogado.

Barroso contraria suas próprias decisões passadas

Antes de julgar o caso de Freitas, Barroso tendeu a reconhecer a responsabilidade da Câmara de Vereadores em processos de cassação por quebra de decoro. Isso ocorreu, por exemplo, em 2020, quando ele avaliou o caso do ex-vereador Vilmar Emílio Heming, cassado na Câmara de Vereadores de Novo Hamburgo (RS) (Rcl 41.280). O ministro afirmou que a cassação não era de responsabilidade federal. Em outro processo, de 2021, Barroso também não restabeleceu o mandato da ex-vereadora Flavia Murray Dartora, que recorreu da decisão na Câmara Municipal de Vereadores de São Miguel do Iguaçu (PR) (Rcl 47.189) pelo mesmo motivo.

“Quebra de decoro não é crime, é uma infração político-administrativa. Então, isso não se aplica ao Decreto-Lei, pode ser a legislação local”, explica Thiago Vieira, mestre em Direito e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR). “O posicionamento do ministro era totalmente oposto em outros casos”, complementa.

Na liminar a favor de Freitas, Barroso não analisa o atentado à liberdade religiosa em nenhum momento e chama o protesto de “pacífico”. Como já mostrou a Gazeta do Povo em relato sobre a invasão, o protesto perturbou a celebração de uma missa.

Vieira observa que a defesa de grupos raciais, de mulheres, de religiosos e de outros grupos discriminados não pode ser perpetrada por meio de crimes. Ele lembra que o Código Penal, em seu artigo 208, tipifica o crime de perturbar cerimônia ou prática de culto religioso. “Gritar palavras de ordem em defesa da igualdade racial é lícito, mas não na frente de um culto religioso, para atrapalhar; nesse caso, deixa de ser lícito e passa a ser crime”, diz. “Por meio de uma decisão provisória, ele [Barroso] legitimou atos criminosos. Então, é como se para defender uma pauta se pudesse depredar o patrimônio público, por exemplo”, acrescenta.

O especialista em Direito Constitucional Acácio Miranda destaca que a liberdade de expressão não é um direito absoluto. “Todos os nossos direitos terminam quando começam as nossas obrigações. Temos a obrigação de combater atos racistas. Mas, a partir do momento em que se impõe dano a um terceiro, há um excesso em relação a isso. Se fosse um ato na porta da igreja, ninguém discutiria isso. Mas, a partir da entrada na igreja, já sai da esfera da liberdade de expressão”, explica.

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