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Bebês de proveta podem ser gerados para servir como medicamento?
| Foto: Pixabay

Soa como roteiro de filme de terror a ideia de se produzir embriões em laboratório pensando exclusivamente na geração de um bebê que venha a ser doador de células para tratamento de um irmão doente. Mas é isso que propõe o projeto de lei 7880/2017 do deputado federal Carlos Bezerra (MDB-MT) que voltou a ser discutido depois de dois anos parado na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados.

O projeto chegou a ser arquivado no fim do ano passado, mas foi desarquivado no início da atual legislatura, a pedido do autor. Na justificativa, o deputado alega a necessidade de se regulamentar algo que já vem sendo feito pelas clínicas de fertilização in vitro, tendo por base apenas uma norma do Conselho Federal de Medicina (CFM), publicada em novembro de 2017.

A norma técnica n° 5 da resolução 2.168 do CFM diz que "as técnicas de reprodução assistida não podem ser aplicadas com a intenção de selecionar qualquer característica biológica do futuro filho, exceto para evitar doenças no possível descendente". Mesmo assim, pais de filhos com doenças incuráveis que têm condições financeiras para bancar os custos do tratamento passaram a buscar clínicas de reprodução assistida para produzir e escolher embriões sem os genes da doença, a fim de gerar um bebê que possa ser fornecedor de células-tronco para o irmão doente. O transplante de células-tronco saudáveis geneticamente compatíveis é a única esperança de cura, até o momento, para muitos pacientes de leucemia e de algumas doenças degenerativas.

Há considerações éticas e morais que estão postas à discussão agora que os deputados foram desafiados a se debruçar sobre o tema. Elas vão da instrumentalização da vida à eugenia - a busca pela raça perfeita.

Quanto a reduzir a vida a um instrumento para satisfação de interesses pessoais de um casal e seu filho doente, o próprio autor do projeto demonstra preocupação. "É preciso muito cuidado para que o bebê medicamento não passe a se sentir apenas um ser utilitário, não desejado por si mesmo, na medida em que foi concebido com a finalidade de disponibilizar órgãos para a cura do mais velho. Por esse motivo, pretendemos que as normas regulamentadoras disciplinem os cuidados a adotar nessa situação e que não existam danos irreversíveis à criança", escreveu o deputado na justificação do PL 7880. E ainda acrescentou estar ciente de que haverá muito mais a se discutir, insistindo na necessidade de uma lei para regulamentar a reprodução assistida com fins terapêuticos: "Temos a consciência de que a proposta suscitará um amplo debate ético, legal e técnico. No entanto, o enfrentamento da questão é urgente, e a falta de pacificação no texto legal é uma grande lacuna".

Para debater o projeto, integrantes da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara convidaram pesquisadores, médicos, juristas e representantes de entidades que defendem os Direitos Humanos. Em audiência pública recente, realizada em 31 de outubro, os especialistas jogaram luz sobre um vespeiro ético para o qual o Brasil raras vezes olhou.

Dignidade humana e direito à vida

Além da discussão a respeito da instrumentalização da vida trazida no próprio projeto, os especialistas levantaram questões como o princípio fundamental da dignidade humana e o direito fundamental à inviolabilidade da vida, garantidos a todo cidadão brasileiro conforme descrito nos artigos 1° e 5° da Constituição, respectivamente. Como explicaram os professores de Direito Civil e defensores dos direitos humanos ouvidos pelos deputados, o embrião não é um amontoado de células, mas uma vida humana em fase inicial de desenvolvimento. Tendo sido gerado aqui, é um cidadão brasileiro.

"A primeira célula já é um indivíduo concreto e já é filho de quem a gerou, não há como negar isso. Os testes de paternidade são a prova de que a nossa identidade está impressa no início do processo de divisão celular. Cada um de nós já foi uma célula, nossa identidade está impressa no nosso DNA desde a fecundação. Eu já fui uma célula. Eu já era humana, aquela célula inicial já era eu. Se ela tivesse sido eliminada eu não estaria aqui", disse aos deputados a professora aposentada da Universidade de Brasília (UNB) Lenise Garcia, doutora em microbiologia, durante a audiência pública.

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Eugenia

A professora Lenise Garcia, que preside o Movimento Brasil sem Aborto, amplia a reflexão citando exemplos internacionais. Em países como Alemanha e Islândia não há mais crianças portadoras de síndrome de Down, não porque tenham descoberto a cura, mas porque opta-se por eliminar a possibilidade de nascimento de bebês com a síndrome, seja através de seleção de embriões, num estágio inicial ou, mais tarde, através de aborto. "Será que é essa humanidade que a gente quer? Uma humanidade que seleciona seus indivíduos a partir de como são os seus genes?", indagou a especialista no debate aberto ao público promovido pela Câmara Federal. "Voltamos à questão ética: devemos eliminar síndromes eliminando pessoas no estágio embrionário? Isso seria classificado como Eugenia." O termo, criado pelo antropólogo inglês Francis Galton (1822-1911), prega a substituição da seleção natural da espécie humana por uma "seleção consciente".

O questionamento foi reforçado pelo professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Salvador (BA) Deivid de Carvalho Lourenço, também ouvido na audiência pública.

"O berço de vidro só tem pertinência se for para assistir a uma técnica de procriação com o propósito de constituir família, não para servir de instrumento à vida embrionária e à satisfação de outro interesse qualquer", disse o professor. "Confere-se ao ser humano nesse contexto a condição de cobaia, reduzida à experimentação terapêutica, tal como ocorreu em outro cenário, em outros tempos, com pesquisas desenvolvidas pelos nazistas, que também se valiam do povo judeu para desenvolver seus estudos ou para se apropriar daqueles materiais genéticos em prol de um interesse supostamente coletivo."

Dilema a enfrentar: o que fazer com os embriões excedentes

A autorização para a reprodução assistida com o propósito específico de produzir um bebê salvador levanta ainda outro ponto crucial, até hoje não tratado pela legislação: o desprezo aos embriões que sobram no processo de fertilização in vitro.

Na audiência pública, a ginecologista e obstetra Melissa de Castro Abelha Rosado, especialista em reprodução humana, explicou aos deputados que para se gerar um filho vivo "gasta-se" mais ou menos 6 embriões.

"São 6 assassinatos para um filho vivo", disse a médica, antes de lançar um questionamento desconcertante. "Isso não se procurando um embrião histocompatível [com compatibilidade genética para doar órgãos, tecidos ou células]. Imagine para se produzir um embrião histocompatível, quantos filhos a gente tem que jogar no lixo?"

É uma colocação forte de alguém que desistiu de trabalhar com bebês de proveta por não poder conviver com a angústia do descarte de vidas humanas em fase embrionária. Por falta de lei, as clínicas seguem apenas as normas estipuladas pelo Conselho Federal de Medicina, assinam contratos com os clientes, em que se define o que deve ser feito com os embriões excedentes, inclusive em caso de falecimento ou divórcio dos pais. Na prática, embriões seguem sendo congelados aos milhares (quando os pais têm recursos e se dispõem a bancar os custos do armazenamento) ou são simplesmente jogados fora.

Segundo a Dra. Melissa Rosado, só em 2017, última estatística disponível, foram descartados no Brasil 70 mil embriões.

"Eu lido com a infertilidade diariamente", disse a médica durante o debate com os deputados. "Para quem quer um filho, 70 mil descartados é muita coisa. Não sei até que ponto a gente tem esse direito de decidir. Talvez fosse o caso de se manter a reprodução humana assistida, mas captar apenas o número de óvulos suficiente para gerar embriões a serem transferidos, para não descartarmos vida."

Se decidirem permitir a produção de bebês para fins terapêuticos os deputados estarão também autorizando a eliminação de dezenas de outros que vierem a ser gerados, simplesmente porque eles não têm o exato código genético necessário para salvar um irmão doente.

LEIA TAMBÉM: O problema dos embriões não implantados é tão antigo quanto o próprio surgimento dos bebês de proveta

Posição do relator do projeto

Na audiência pública, o relator do projeto, deputado Luiz Ovando (PSL-MS), que também é médico, manifestou solidariedade às famílias de pessoas com doenças congênitas graves, algumas delas presentes no debate. Mas reforçou considerações que devem nortear o parecer.

"No caso das fertilizações in vitro, há embriões perfeitos remanescentes com os quais precisamos lidar", disse o deputado aos colegas encarregados de avaliar a viabilidade do projeto de lei. "Nós poderíamos estar agindo como maestros da natureza? Essa é a questão."

Agora cabe a ele apresentar parecer para votação na Comissão de Seguridade Social e Família, o que deve ocorrer ainda este ano. Se o relator não indicar o arquivamento do projeto e se o parecer for aceito pela maioria, o PL 7880 segue para análise em outra Comissão, a de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). Lá a análise será apenas a respeito da constitucionalidade da proposta. A discussão promete ser longa. E, de novo, se os integrantes da CCJC concluírem que o projeto não fere a Constituição e concordarem de forma unânime com o que foi proposto, ele pode ser aprovado de imediato, sem passar por análise em plenário – algo pouco provável de acontecer dada a complexidade da questão.

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