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Açúcar já foi usado mais como remédio

O termo "botica" (ou farmácia), que aparece no título do trabalho da historiadora da Unicamp Leila Mezan Algranti é outra importante chave para compreender o processo de formação da cozinha brasileira, já que as especiarias não serviam apenas para dar sabor aos alimentos. "Em muitas situações, o mesmo produto era usado como tempero e alimento ou como medicina na forma de um chá ou de um emplastro", afirma. Segundo ela, as receitas de pratos não eram muito diferentes das receitas farmacêuticas, já que os produtos (especiarias) usados no combate às indisposições e às doenças estavam nas hortas, quintais e despensas.

Excelente conservante

A pesquisadora afirma que antes da exploração da cana de açúcar encontrada nas ilhas do Atlântico e na América, os europeus costumavam usar o açúcar mais como ingrediente de remédios, por ser um produto raro, do que na produção de doces. "O açúcar, assim como o sal ou o azeite, sempre foi considerado um excelente conservante. Daí o termo ‘conserva’ de fruta, pois permitia conservar por mais tempo os frutos que eram sujeitos à sazonalidade ou às estações do ano", afirma.

Durante a pesquisa, Leila encontrou registros do consumo, pelos portugueses, de frutas brasileiras na forma de compotas, inclusive por pessoas doentes, enquanto as frutas in natura eram destinadas, geralmente, à alimentação dos escravos.

Paraná deu início aos estudos

O Paraná é pioneiro, no Brasil, no estudo de História associada à alimentação. Desde 1992, quando o historiador Carlos Roberto Antunes dos Santos defendeu sua tese Alimentar o Paraná Província, para obter o título de professor titular da UFPR, a instituição coleciona 12 teses de doutorado e 15 dissertações de mestrado sobre o assunto. Uma dessas dissertações conferiu o título de mestre, em março do ano passado, à pesquisadora Heloíse Peratello.

No estudo A formação dos corpos: representações sobre corpo e alimentação, no Brasil, nas décadas de 1970 e 1980, ela analisa, entre outras coisas, a influências das reportagens de revistas segmentadas nas práticas alimentares nessas duas décadas, especialmente no que diz respeito à busca de um corpo ideal. Entre as constatações obtidas pela pesquisa está a transferência – entre os anos 70 e 80 – das matérias sobre o ideal de emagrecimento das seções de saúde para as seções de comportamento nas revistas. "Para além da questão ‘saúde’, o corpo passou a ser indicador de quem é esse indivíduo", explica.

Segundo Heloísa, as revistas analisadas têm um perfil que vai do discurso médico predominante ao ‘conselho de amiga’. "O discurso médico, no que se refere à alimentação, muda a todo momento. É comum usar o exemplo do consumo de ovos nesses casos. Em determinados períodos o ovo faz mal e em outros ele faz bem. Existe um conceito em história da alimentação que se chama ‘cacofonia alimentar’, ou seja, muito se fala sobre a alimentação e muitas vezes de forma contraditória. O mesmo acontece com o discurso médico", considera.

A mistura harmônica de três "raças" (índio, branco e negro) está longe de ser, por si só, uma "receita" de Brasil. Por meio do estudo de práticas alimentares, pesquisadores brasileiros vêm demonstrando que o mito fundador do nosso país deixa de lado uma série de conflitos e desigualdades. No estudo Uma cozinha à brasileira, a antropóloga da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Maria Eunice de Souza Maciel reflete sobre a importância da alimentação no estudo da História e afirma que a diversidade de povos na formação do Brasil não deve ser considerada um "ponto de chegada" e sim um "ponto de partida" para compreender as relações dinâmicas entre esses povos, inclusive as de dominação.

Exemplo disso é a participação dos ingredientes africanos na nossa culinária, como o azeite de dendê, supostamente trazido pelos escravos. "Imagine uma africana sendo tirada às pressas do seu local de origem. Ela mal podia levar os seus pertences. Não teria como se preocupar em recolher sementes, uma fruta de que ela gostasse", afirma a pesquisadora. Segundo ela, os alimentos de origem africana chegaram aqui através de transações comerciais. "Mesmo assim, esses elementos persistiram por aqui devido à resistência dos escravos e seus descendentes", ressalta.

Integração alimentar

A historiadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Leila Mezan Algranti compartilha dessa visão. Em seu estudo As especiarias na cozinha e na botica – Um estudo da história da alimentação na América portuguesa, ela revisita o período de mais de 300 anos em que o Brasil foi colônia portuguesa (entre os séculos 16 e 18). Segundo ela, esse é um tipo de pesquisa basicamente documental. "Interessam desde cadernos de receitas até listas de compras de instituições, como colégios, conventos e hospitais", explica.

Desenvolvido há cerca de três anos, o trabalho traz algumas pistas importantes para compreender a complexidade da cozinha brasileira. Segundo ela, a visão tradicional sobre a nossa culinária idealizou um processo pacífico em que o português se encantou com a riqueza de especiarias nativas brasileiras e, de pronto, admitiu o uso delas em sua alimentação.

Já o trabalho da historiadora explica que durante um bom tempo houve resistência dos colonizadores. Segundo ela, a incorporação dos hábitos alimentares europeus no Brasil foi muito mais rápida do que a adoção de alimentos originários daqui pelos portugueses.

Brasileiro se reconhece em seus pratos

Feijoada, vatapá, acarajé. A sociedade brasileira se reconhece também através dos pratos criados no país e que, supostamente, sintetizam sua história. No entanto, muitas pessoas aceitam isso sem mesmo fazer ideia dos sabores ou dos ingredientes que essas receitas levam. "Os povos criam sistemas alimentares, ou formas de comer, e as comidas típicas fazem parte disso, mesmo que elas não estejam na alimentação cotidiana", afirma a antropóloga Maria Eunice de Souza Maciel.

Segundo ela, outra referência importante na construção da cozinha brasileira é a combinação "feijão com arroz". Mas como ela apresenta na pesquisa, essa mistura também é resultado de uma construção simbólica que só se consolidou efetivamente no século 18. O feijão já havia sido introduzido antes, com a chegada dos europeus, e era consumido basicamente com farinha (de milho ou mandioca). O arroz começa a ter presença significativa na segunda metade do período colonial, quando passa a ser produzido em maior escala. Apesar disso, a antropóloga ressalta que as farinhas não deixaram de ter presença marcante no prato do brasileiro.

"Por isso, a cozinha não pode ser estudada como um inventário", defende Maria Eunice. Segundo ela, um estudo histórico confiável baseado na alimentação tem de considerar todos os processos, representações e classificações que estão por trás do ato de comer.

O historiador da UFPR Carlos Roberto Antunes dos Santos exemplifica esse processo a partir da história do estado. "Não se pode pensar o Paraná sem o barreado, que é um prato típico nosso. No entanto, ele é consumido basicamente no Litoral. Há pessoas de outras regiões do estado que jamais provaram o prato, mas ele não deixa de fazer parte de uma identidade do paranaense", explica o autor do livro História da Alimentação no Paraná, de 1996.

Segundo ele, na dinâmica da alimentação é natural que alguns elementos também desapareçam ou mesmo percam espaço na cozinha. "É o que também tende a acontecer com o pinhão. Apesar de ter uma importância significativa na formação da cozinha paranaense, ele vem sendo cada vez menos consumido", avalia.

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