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No Brasil, há milhares de crianças que crescem em abrigos. Viver nessas casas – um dia chamadas de orfanatos – significa passar alguns dos melhores anos da vida simplesmente esperando. E esperar, para quem tem 5, 7, 10 ou 13 anos de idade, é o mesmo que sofrer. Sofrimentos, para gente tão jovem assim podem ser causados por coisa pouca, pela bicicleta que se quer ou pela bola de futebol que foi parar no quintal do vizinho. Abre-se um berreiro e, com sorte, ganha-se a bola de volta e uma bicicleta da cor esperada. Mas ter de aguardar por um pai e uma mãe por até dez anos não é coisa que se faça.

Mas se faz. E muito. Levantamento nacional do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 2004, feito em 589 casas-lares, indica que 80 mil crianças e adolescentes brasileiros moram em abrigos. Desses, 86,7% têm família e 58,2% mantêm vínculos com os pais. Dos 80 mil desafortunados, 8 mil estão prontos para a adoção – ou seja, seus pais, caso os tenham, já foram destituídos do poder familiar e tudo de que os garotos e garotas precisam é de alguém que os leve para casa, de papel passado. Os outros 72 mil ficam na expectativa de que os pais biológicos resolvam problemas que vão da pobreza extrema à drogadição e estejam aptos a recebê-los outra vez.

Entre adotáveis e não-adotáveis o período de permanência nos abrigos beira a crueldade. O motivo para tanta espera é o calcanhar-de-aquiles do setor e gera debates apaixonados – quando não desesperados – entre os educadores, agentes e executores da lei. De um lado, lamenta-se a cultura de entender o ato de adotar como uma simulação dos laços biológicos, acirrando a disputa por crianças pequenas e parecidas aos pais. De outro, a facilidade com que pais, cujos filhos foram retirados de casa provisoriamente, por vias legais, mesmo sem terem condições de criá-los , apelam judicialmente, anos a fio, mantendo o pátrio poder e impedindo que sejam adotados. Quando mudam de idéia, o estrago está feito.

O estrago se chama tempo. De acordo com o Ipea, 32% dos abrigados ficam nas casas-lares entre dois e cinco anos, mas esse período pode chegar a uma década, até que o adolescente complete 18 anos. É um período longo o bastante para que a infância seja roubada, não deixando uma foto sequer no álbum de retratos. O bastante também para que as chances de adoção e de felicidade voem pelos ares.

Crianças com mais de cinco anos vão para o final da fila. Se forem meninos, negros, tiverem irmãos – obrigado a adoação conjugada – e alguma necessidade especial, diminuem as probabilidades. O levantamento do Ipea confirma: 58,5% dos abrigados são meninos; 63,6% são afrodescendentes, 61,3% têm entre 7 e 15 anos de idade. Os números aqui não mentem. Um bom estudo de caso é a própria capital do Paraná. De acordo com a promotora de Justiça Michele Rocio Maia Zardo, da Vara da Infância e Juventude-Adoção, há cerca de 280 crianças e adolescentes hoje, em Curitiba, prontas para a adoção. E 600 pretendentes. Mas a conta não fecha, já que a garotada disponível não se encaixa nas expectativas dos pais e das mães.

Contrafogo

Pode-se argumentar que as casas-lares são hotéis de luxo perto dos lugares de onde saíram as crianças abrigadas – invariavelmente filhas da pobreza. O Ipea revela que 24,2% delas tiveram de deixar a família por causa da miséria, 18,9% vitimadas pelo abandono, 11,7% pela violência doméstica, 11,4% por conta da dependência química ou alcoolismo dos seus cuidadores. Não é um mundo do qual se tenha saudade. Mas há a solidão do abandono, cujo dano qualquer um pode averiguar vasculhando as próprias memórias. Depois, é só multiplicar por dez.

"A criança fantasia uma família. Quer pertencer a alguém. Pergunta-se o tempo todo sobre a ausência dos pais", ilustra Eliane Salcedo, do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedca) e membro da ONG Recriar. Depois de visitar 22 abrigos, a educadora e seu grupo montaram um projeto de apadrinhamento, a ser implantado em 2007. A solução é simples – para reduzir os danos causados pela demora na adoção, vai se formar uma rede de padrinhos capaz de manter a criança em contato constante com famílias de carne e osso, com grandezas e miudezas, mantendo-as ligadas à realidade. É o mínimo.

Raro encontrar alguém ligado aos abrigos que não lamente a morosidade do sistema de adoções no Brasil. Raro, também, quem não sopre a ferida lembrando o dilema que é decidir o futuro de uma criança. "Não culpo a legislação. Demora porque as famílias não têm como sair dos problemas em que estão metidas", diz Rodrigo Collaço, presidente da Associação de Magistrados do Brasil. Retirar o direito dos pais é uma das medidas mais drásticas que um juiz pode tomar. Para quem julga, não é permitido errar, sob pena de agravar perdas e danos. O mesmo se diga dos pais. Reconhecer a incapacidade de criar os filhos, liberando-os para a adoção, equivale a admitir o próprio fracasso. No frigir dos ovos, o estado crônico de indefinição vira um vaivém de recursos jurídicos que representam ganho de tempo para os pais e um desastre para as crianças.

O quadro já é velho conhecido. As que permanecem muito tempo nas casas-lares têm poucas chances de serem adotadas, principalmente se tiver mais de 5 anos de idade, ser menino, negro, com irmãos – já que nesse caso a adoção deve ser em conjunto – e portador de alguma necessidade especial. Para esse time, resta a esperança de ser adotado por uma família internacional, o que acontece com mais freqüência do que se imagina: até o final de novembro deste ano foram 34 adoções por estrangeiros, somando 85 crianças. Essa conta estranha fecha: 23 casos eram de grupos de irmãos.

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