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De hoje a 25 de setembro, quando o país comemora a Semana Nacional do Trânsito, a ordem é buzinar números e estatísticas no ouvido dos brasileiros. Afinal, não é de hoje que o índice de acidentes se tornou uma questão de calamidade pública, digno de passeatas e panelaços. Para quem acompanha o problema de perto, como juízes, promotores, delegados e demais agentes, contudo, uma semana, mesmo que barulhenta, é coisa pouca diante do estrago de 30 mil mortos por ano, 350 mil lesionados e a alta incidência de jovens entre os mortos, 32,7% do total – de acordo com dados permanentes do Datasus.

Detalhe: em Curitiba, 36% dos acidentes são causados por jovens de 18 a 29 anos – donos de 22% das carteiras de habilitação, de acordo com o Detran. Igualmente, 36% dos acidentes são fruto da falta de atenção, confirmando a banalidade do trânsito nosso de cada dia. "Em geral, só nos procuram em datas especiais ou quando acontece uma tragédia", lamenta o juiz Rogério Ribas, 38 anos, da 2.ª Vara de Trânsito.

O sentimento de Ribas é comum entre os profissionais procurados pela reportagem. Reivindica-se que o assunto entre na pauta permanente das escolas, igrejas, empresas e meios de comunicação. Só uma força-tarefa, garantem, pode reverter o quadro que tem feito do trânsito um concorrente de homicídios por armas de fogo.

O alerta geral de que "trânsito mata" não poupa uma cidade como Curitiba, tida como modelar no setor de transportes. Dados do Detran são de deixar insones pais, motoristas e técnicos. Com uma população de 1,7 milhão, a capital ultrapassou a frota de 900 mil carros. Mais de 50% dos curitibanos estão motorizados – e, tomara, sem meter a mão na buzina. Como a frota cresce 7,5% por ano, aproxima-se o dia em que a terra do Ligeirinho e das estações-tubo vai chegar a seu veículo número 1 milhão. Nada a comemorar. Pelo menos um em cada cem acidentes leva alguém a óbito. A média é de 25 mil trombadas/ano – 6.588 com vítimas, mil a mais do que Porto Alegre. Essa marca se manteve estável nos últimos seis anos, mas, ainda assim, nada confortável. É como se a cada ano um bairro como o Santa Cândida precisasse dos préstimos do BPTran e da funerária mais próxima.

Se a conta for feita com dados da Delegacia de Delitos de Trânsito (Dedetran), a soma fica ainda mais sombria. Os arquivos da Polícia Civil – responsável pelo setor – indicam que em 2005 morreram 632 pessoas no trânsito da capital. Este ano, foram 433. O ano de 2006 pode bater recordes. Para o cidadão que se afoga em números divulgados pelos noticiários, essas somas todas nem sempre dão a proporção dos dilemas que se escondem por trás de freadas e estrondos ouvidos da janela de casa ou durante o expediente. Passado o arrepio, o resto é rotina.

O trânsito, por estar relacionado a um objeto de desejo, como o automóvel, costuma ser visto como uma questão pessoal e não como um fato social. Daí raramente mobilizar a população em momentos críticos, inspirar ONGs, pastorais religiosas e ações educativas contínuas. Para os homens da lei – sobre os quais pesa a acusação de que a legislação de trânsito no Brasil é camarada demais – um novo fôlego para esse debate faria um bem danado.

O juiz Rogério Ribas já atuou na Vara da Família. Reza a lenda que nada é igualável à guerra travada entre maridos e mulheres. Ou quase nada. Há dois anos na Vara de Trânsito, o juiz administra 1.300 inquéritos, 450 processos e o corpo a corpo diário com gente marcada pelos acidentes. Nas processos que estuda com cerimônia estão a papelada e o dossiê fotográfico do terror. São pés e cabeças cortadas, corpos virados do avesso, sangue. Numa delas está o jovem de 20 anos, que andava de motoneta e foi atingido por um motorista que fazia uma conversão perigosa à esquerda. Em outra, o casal estraçalhado na BR. "É tão assustador que tem quem se sinta culpado mesmo sendo inocente. Há casos em que punição da vida é maior que a legal", reforça.

O juiz se alista entre os que afirmam que o crime de trânsito não fica impune, como se diz, mas considera a punição muito branda. "Digamos que é uma resposta fraca. A pena em liberdade deixa a impressão de que a Justiça não fez nada pelo caso. Mas a sociedade não se comporta de maneira muito diferente. Há uma tolerância desmedida com os delitos que levam a mortes por acidente", diz o homem que julga de 80 a 100 homicídios por ano, cujo desdobramento é a conciliação financeira e pena em regime aberto em uma das 30 organização conveniadas, como a FAS, IML, e BPTran.

A "resposta fraca" da qual fala Ribas faz eco na rotina de outro juiz, Rogério Etzel, 40 anos, do 2.º Tribunal do Júri, local onde os casos mais graves de crimes de trânsito deveriam ir parar. Deveriam. Estima-se que 98% dos inquéritos, mesmo os cabeludos, enquadrem-se na categoria homicídio culposo – ou seja, mesmo que tenha negligenciado as normas, o autor não teve a intenção de matar, o que ameniza sua culpa. Para esses casos, o Código de Trânsito Brasileiro prevê de dois a quatro anos de prisão, cumpridos em regime aberto.

Exceção à regra é o "dolo eventual", quando o motorista se excedeu no riscos e provocou a morte do outro. Em quatro anos e 280 julgamentos, apenas três casos chegaram às mãos de Etzel – um deles ainda em trâmite. "A sensação de impunidade é o que existe de pior", lamenta. Juízes e promotores – pondera Etzel – são intérpretes da lei. "A lei é essa."

Lei da selva

O delegado Armando Braga de Moraes Neto, 43 anos, achava ter visto de tudo em matéria de tragédias urbanas. Durante mais de uma década trabalhou em setores como a Homicídios, Antitóxicos e Centro de Operações Policiais Especiais (Cope). Até que em 2004 desembarcou na Delegacia de Delitos Trânsito. Ficou pasmo, mais ou menos nessa ordem: são em média de três acidentes por dia causados por embriaguez; pouca gente procura a delegacia especializada em caso de lesão, achando que precisa ser chamado para depor; muitos episódios são de tirar o sono por três dias, como o dos cinco decapitados em um acidente perto da Sociedade Hípica. "Morre muita gente nas ruas", repete. "É pior do que arma de fogo", espanta-se o judoca e motociclista nas horas vagas – agora também militante das causas do trânsito. "Sou um formador de opinião", diz o homem para quem é preciso estratégia para que o Código de Trânsito Brasileiro não se torne benevolente demais. Nada de tapar os ouvidos quando o pneu raspa o asfalto.

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