Capa da cartilha feminista para “mulheres com deficiência”: contra a “opressão capitalista”.| Foto: Reprodução
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No ano de 2020, olhamos com fastio mais uma burocrática cartilha de direitos humanos. Esta, para deficientes mulheres, redigida por um coletivo feminista, bancada pela União Europeia, mais uma tal de ABONG (uma ONG de ONGs brasileiras) e outras entidades. À página 20, celebra “o advento da Declaração Universal dos Direitos  Humanos” em 1948. Mesma Declaração que, no artigo 17, reconhece o direito humano à propriedade individual. À página 137, porém, lemos que essa cartilha sobre os direitos das deficientes pretende “levar  também  o questionamento desse sistema capitalista, para, assim, alcançarmos mais pessoas  que  buscam  mudanças  e  alternativas  a  essa  realidade.  Afinal,  a revolução será feminista, antirracista e anticapacitista ou não será!” Convidamos o leitor a apertar Ctrl+F e pesquisar os termos “capitalista” e “socialista” nessa cartilha quando tiver insônia: lendo tamanha profusão de clichês, ao menos o dinheiro do contribuinte europeu servirá para o seu sono. Será o único efeito benigno dessa cartilha, que corrói o nome e o ideal dos direitos humanos.

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O contrabando de ideais

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Palavras mudam de significado naturalmente. Carro, por exemplo, é uma palavra que existe no português desde o século XII, com o significado primário de veículo sobre rodas. No século XX,  seu significado passou a ser o automóvel motorizado de passageiros, coisa nova e de popularidade crescente. Não há problema com isso: se uma coisa é criada e se torna popular, então ela às vezes se apodera de uma palavra velha. As coisas antigas, caso não desapareçam, arranjam outros nomes. Outros veículos sobre rodas deixaram de ser carro e passaram a ser chamados por nomes mais específicos: vagão, carroça, carrinho de mão, biga etc. O carro e a carroça convivem na boca do povo, já que as coisas que designam são corriqueiras. O letrado terá o bom-senso de não procurar uma biga numa loja de carros usados. Todo esse processo é espontâneo e harmonioso.

Há um processo parecido com este, só que artificial e perigoso. É o contrabando de ideais: consiste em tirar de circulação um ideal nobre e substituí-lo por outro, pérfido, através de palavras. O contrabandista insiste tanto em chamar o urubu de meu louro, que com o passar do tempo todo mundo acha que papagaio é carniceiro. Só que os ideais, ao contrário dos papagaios, vivem nas palavras. Papagaios irão existir mesmo que os chamemos de urubu. Já os ideais, sem um nome, entram em extinção.

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O ideal de haver saúde, educação, liberdade de expressão e respeito à propriedade para todos os humanos, independente de raça, classe ou credo, já atendeu pelo nome inequívoco de direitos humanos. À Declaração Universal dos Direitos Humanos, a URSS não aderiu, nem jamais teria aderido o III Reich, se ainda existisse em 1948. Hoje, porém, o mesmo nome é evocado para preterir pessoas em função até de sua raça. Contrabandistas surrupiaram um ideal nobre, e empurraram suas empulhações socialistas, racistas, sexistas e anti-humanitárias, querendo que levemos para casa o seu horrendo urubu. Com isso, a sociedade fica dividida entre duas turbas de tolos se digladiando numa gritaria estéril: de um lado, os tolos que se dizem contra os direitos humanos; de outro, os falsários que se dizem porta-vozes dos direitos humanos, ao tempo que clamam por discriminação racial ou sexual, e por expropriações. Destas duas turbas, a segunda, pseudo-humanitária, é a que faz barulho há mais tempo. Ela educou seus opositores políticos a acharem os “direitos humanos” uma coisa ruim; e, enquanto for ouvida com deferência por pessoas estudadas ou simplesmente esnobes, haverá a outra turba. Esta, a seu turno, estará disposta a rechaçar tudo o que leve o nome de direitos humanos, seja urubu ou meu louro.

Refrescar a memória

Nesse cenário, é preciso acalmar os ânimos para não tratarmos coisas nobres a tapas e pontapés, só por causa da confusão criada pelos falsários. Nada melhor para isto do que ler bons livros de épocas em que as palavras não haviam sido desgastadas, e homens decentes escreviam de maneira honesta sobre as coisas que lhe pareciam importantes. Um bom livro de uma época que não tenha os mesmíssimos defeitos da nossa funciona como uma máquina do tempo; ajuda sair da nossa época para espairecer.

Sefan Zweig, fino homem de letras que acontecia de ser judeu, austríaco e apartidário quando grassavam ideias totalitárias na Europa, em 1934 escrevia as seguintes palavras, em opúsculo sobre o humanista Erasmo de Roterdã (1466-1536), também apartidário, e que viveu na Europa convulsionada pela Reforma: “Ai de nós! Cumpre reconhecer e confessar, sem rodeios, que jamais vingará no seio da massa o ideal que visar exclusivamente ao bem-estar coletivo.” No ano de 2020, coletividade é uma expressão gasta, que logo remete aos que querem expropriar as coisas dos inimigos e obter vantagens em função da raça ou sexo. Mas continuemos, afinal, quem diz não é um militante de coletivo, mas Stefan Zweig: “Nos caracteres medíocres, o ódio reclama os seus direitos funestos, em detrimento da bondade pura, e o egoísmo individual exige de toda ideia proveitos pessoais. As multidões serão sempre mais acessíveis ao compreensível, ao concreto do que ao abstrato e, por isto, na política, sempre granjeará mais facilmente adeptos o programa que, em vez dum ideal, proclamar um antagonismo, uma oposição cômoda, intuitiva e maleável, a outra classe, a outra raça ou a outra religião; porque é de ódio que o fanatismo nutre, de ordinário, a sua chama criminosa.” Os grifos são meus.

Há quanto tempo paramos de pensar em ideais, em vez de mera reação? Os anticapitalistas de hoje se colocam como mera reação à opressão. Dão-se licença para tudo, chamando de “reação do oprimido”: são literalmente reacionários. Com sua temível fúria inquisitorial, suscitam uma espécie de contra-reação, que é a nossa direita. Todos se empenham em reagir ao outro, e se desobrigam de perguntar: o que é bom para a coletividade da nossa sociedade, a qual obviamente inclui homens e mulheres, além de uma profusão de cores e variadas classes sociais? Esta é uma pergunta, por princípio, proibida para a nossa esquerda, comprometida que estão na sua cruzada contra os “historicamente endividados”. Não são capazes de pensar em bem comum; mas somente no bem de uma raça, ou de um sexo, ou de um atributo sexual. (Eu acrescentaria “de uma classe”, se isso não estivesse tão fora de moda entre esses supostos marxistas. Quem se importa mais com raça do que com classe esteve representado na II Guerra por uma potência que não era a URSS.) Bem comum, portanto, é um desses “meu louro” que dirigimos um urubu dos mais fedidos. E coletividade, numa sociedade como a brasileira, é um termo que, por pura lógica, inclui alguns judeus brancos de olhos azuis, bem como empresários ricos que votaram em Bolsonaro.

O “egoísmo que exige de toda ideia proveitos pessoais” é outra expressão que nos ajuda a detectar urubus. Os supostos defensores dos direitos humanos são muito ágeis em exigir cotas em tudo quanto venha do erário: pós-graduação, empregos, editais de artes. Das empresas privadas, exigem empregos como o clero que vendia indulgências. E eis que hoje “direitos humanos” é um nome menos associado a saneamento básico do que a cota racial num doutorado em universidade prestigiosa. Enquanto isso, em nosso país, gente de todas as cores, sexos e orientações sexuais vive sem água encanada… Sem dúvida, é gente má, avessa à bondade, aquela que faz o ideal dos direitos humanos orbitar sobre o umbigo de suas barrigas cheias. É gente perversa a que olha para a miséria e pergunta a cor e o sexo do miserável antes de decidir qual tratamento lhe deve ser dado. É anti-humanitário quem usa a miséria de outrem para pedir benesses para a própria pessoa.

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Reagir e alçar as vistas

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, pode ser acessada aqui. Não é nenhum calhamaço; pode ser lida em menos que meia hora. A melhor reação contra a turba pseudo-humanitária é municiar-se de conhecimento. O caso dos direitos humanos é o mais fácil: a Declaração está no site da própria ONU! Que a leitura desse documento sirva, ademais, para promover agendas políticas voltadas para a coletividade de nossa sociedade, mirando o bem-estar dos seus cidadãos “sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”, como reza o artigo 2 dos Direitos Humanos. Política nacional é isto, o resto é picuinha de facção.

* Bruna Frascolla é doutora em filosofia e autora de As ideias e o terror (República AF, 2020).