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Um grupo de 25 pesquisadores de pedigree acaba de assinar o Manifesto de Cambridge, no qual admitem algum grau de consciência a mamíferos, aves e até polvos. Deu o maior alarido no mundo da ciência. O engraçado é que donos de cachorros, gatos, papagaios e tihuanas contrabandeadas afirmam a mesmíssima coisa. Leigos e doutos devem estar certos. Em caso de dúvida, recomendo conhecer Rex, o beagle, prova suprema da razão e sensibilidade no reino animal.

Rex ("rei" em latim) tem 4 anos e, à revelia dos que duvidam de sua pureza racial, possui predicados para integrar a matilha da família real britânica. Sua pelagem causaria inveja às premiadas chinchilas chilenas. E, como não se resume a mais um focinho arrebitado dos pet shops, é dono de uma biografia tão trágica quanto a dos Romanovs: esse cão de beleza convulsiva pertence à parcela da população canina abandonada, quais brinquedinhos que perderam a graça.

Aconteceu numa manhã de domingo de 2008. Um sujeito estacionou na Praça Rui Barbosa, abriu a porta do carro último tipo e lançou o pequenino Rex à própria sorte. Embaixo de uma árvore, os moradores de rua Celso Roberto Kieulenas, a mulher Maria Rosa e os dois filhos do casal assistiram à desova e acudiram, todo abraços. Foi amor à primeira lambida – um encontro programado pelos deuses.

Celso Roberto e Maria Rosa se conheceram anos antes, na fila da padaria. Ele vinha de uma família tradicional do Rebouças, filho de dona Nahir e de seu Bruneslau, operário da Fábrica de Fósforos Pinheiro. Ela era guria de Irati. Casaram-se e podiam jurar que seriam felizes para sempre, até serem lançados à rua da amargura, integrando a estatística dos 2,7 mil curitibanos em situação de mendicância.

A história que viveram bem lembra o "poema das perdas" de Elisabeth Bishop – num dia descobriram não ter dinheiro para cortar o cabelo; noutro se foram os móveis, a tevê 21 polegadas, a casa onde moravam. Numa semana se viram só com a roupa do corpo. Noutra perderam a guarda das crianças, levadas aos prantos na Kombi da assistência social.

Ficaram entregues aos temporais e às marquises, mas ainda lhes restava o Rex, tratado com banhos de chafariz, enleado em cobertores de campanha e nutrido com o melhor das marmitas frias. Certa feita, num albergue, os Kieulenas receberam cama limpa e uma sentença: para ficar teriam de se desfazer do cachorro. Antes a morte. "Foi quando decidi fazer uma meia-água para a gente", conta Maria Rosa, que esticou uma lona preta na Praça Ouvidor Pardinho, endereço que lhe parecia de direito – o marido, afinal, fora criado naquelas redondezas.

Os vizinhos à praça não tardaram a enchê-los de mimos, comovidos por aquela inesperada cena de manjedoura. Dos médicos da Clínica Sugisawa veio uma barraca de camping. Das senhoras que fazem o cooper, empadões enleados em panos de prato. O rapaz do hot dog só falta rebatizar seu quiosque com o nome de Rex. Um benfeitor lhe dá a ração "King pet benesse". Das prostitutas e travestis da Iguaçu recebem proteção maternal. "Misericórdia", divertem-se, em coro, ao falar das novas amigas.

É de fato tocante ver Rosa passando a piaçava no gramado; ouvir as rezas de Celso a santo Expedito, flagrar os modos aristocráticos de Rex, hoje mais fotografado que a bela igreja do Coração de Maria, logo em frente. Um aventureiro chegou a oferecer R$ 300 pelo bicho. Ganhou risos em resposta. A propósito, o casal também é disputado. Incontáveis religiosos já se aproximaram e pediram que aceitem Jesus em troca de um lugar no Paraíso.

"Eu já disse pela milésima vez que aceito, aceito e aceito... Mas eu só quero uma casa", gesticula Celso, cansado de guerra. Tem 61 anos. "Isso é vida?", repete, ao falar das vias sacras ao Ministério Público. Quando bate o desespero, olha para a mão direita, na qual, quando adolescente, fez duas tatuagens proféticas: uma cruz e um trevo de quatro folhas. Sua cruz sabe bem qual é. Quanto à sorte, suspeita, abanou-lhe o rabo naquela manhã de domingo. Sem a nobreza de Rex, Rosa e ele teriam sido derrotados pela pobreza.

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