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Num dia qualquer do ano passado, José, morador de um bairro qualquer de Curitiba, saiu de casa inventando uma desculpa qualquer para a esposa para ir para a rua. Foi "bater perna" no Centro da capital. Furou a fila no ponto de ônibus e garantiu toda a viagem sentado. Atravessou a avenida movimentada em meio aos carros, fora da faixa de pedestres, e entrou na primeira galeria de lojas populares que encontrou. Foi direto à barraquinha de falsificados. Comprou dois ou três CDs piratas, colocou o favorito no aparelho de som portátil e seguiu de volta para casa, deixando como rastro restos da embalagem plástica do disco jogados no chão. Só não chegou com troco porque no caminho ficou com pena de um pedinte e resolveu lhe dar as moedas como esmola.

José é um personagem inventado. Os deslizes de comportamento que aparecem na história, no entanto, são baseados no resultado de uma pesquisa feita em dezembro pela Paraná Pesquisas com exclusividade para a Gazeta do Povo. O curitibano "pisou na bola" em 2005 e admite: furou filas, jogou lixo na rua, comprou pirataria (veja quadro)... Fez mais: mentiu e não tem vergonha de reconhecer – quase metade da cidade (46,1%) confessa que faltou com a verdade em casa ou no trabalho pelo menos uma vez no ano passado. Outro dado curioso. À revelia das campanhas contra a esmola – principalmente por manterem crianças e adolescentes nas ruas –, o curitibano, movido em sua maioria pela pena, não nega uns trocados a quem lhe pede.

"Eu faço, mas eu sempre digo que é para eles fazerem o que eu digo e não o que eu faço", desculpa-se a dona de casa Lourdes Mello Castro, de 48 anos, admitindo, na frente de três dos seus quatro filhos, que costuma furar filas em lotéricas e agências bancárias. "Quando é lugar que eu conheço, já chego e vou pedindo licença para ser atendida primeiro", descreve. E não é só furar fila o "pecado" de Lourdes. "No Centro de Curitiba eu quase não jogo lixo porque é limpinho, mas nos bairros vai no chão mesmo", confessa, rindo.

A dona de casa acha engraçado o que faz porque não vê maldade nos atos, que considera "coisa inocente". É uma postura que impressiona quem fez o levantamento na rua e constatou que Lourdes faz parte de um grupo não tão pequeno de infratores. "O índice dos que cometeram pequenos desvios pode ser considerado altíssimo", avalia o diretor da Paraná Pesquisas, Murilo Hidalgo Lopes de Oliveira. Para ele, até mesmo os 10% da população que disseram ter furado fila pelo menos uma vez no ano é um número muito alto. "Hoje em dia, furar fila é constrangedor, porque há uma cobrança maior da sociedade. Não é uma coisa fácil de confessar; ainda assim, uma em cada dez pessoas confirmou que fez", analisa.

Na opinião do professor de Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Ricardo Costa de Oliveira, as transgressões do curitibano fazem parte de uma desordem comum na cultura brasileira. "Existe uma separação da sociedade real (práticas sociais do cotidiano) para a sociedade formal (regras bem definidas, padrões rígidos). No Brasil, a sociedade é bastante informal", diz. Para o sociólogo, legislações muito extravagantes, que não correspondiam à realidade da população, acabaram dando origem ao famoso "jeitinho brasileiro". "Foi a cultura de adaptação e sobrevivência que fez o Brasil se desenvolver. De um lado o brasileiro é informal e desordeiro, mas de outro cria códigos de comportamento que não estão escritos, mas funcionam", afirma.

Um dos códigos de comportamento que só funcionam no Brasil, exemplifica Oliveira, é a comemoração do carnaval. "Em outros países, mesmo nos desenvolvidos, dificilmente haveria o controle da ordem social de milhares de pessoas alcoolizadas na rua como acontece aqui", explica. O que falta, na visão do sociólogo, é aproximar códigos, leis e normas do comportamento real do brasileiro e educar melhor a população.

A Paraná Pesquisas ouviu 512 moradores de Curitiba maiores de 16 anos. As entrevistas foram feitas durante os dias 26 e 27 de dezembro, sendo 19,53% acompanhadas. A amostra atinge um grau de confiança de 95% para uma margem estimada de erro de 4,5 pontos porcentuais.

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