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Parati (RJ) – O tamanho da antipatia de Miles Davis (1926–1991) era comparável ao de seu talento para o jazz.

O trompetista subia ao palco e começava a tocar de costas para a platéia sem ao menos dizer boa noite. Terminava o que tinha que fazer ali, pegava seus apetrechos ia embora sem dizer tchau.

Quando J.M. Coetzee assumiu seu lugar no centro do palco da 5.ª Festa Literária Internacional de Parati (Flip), sua postura foi a de um Miles Davis literário. Com a diferença que o Nobel sul-africano ainda disse "boa noite" e "obrigado", cada qual no início e no fim de sua leitura no sábado.

Na apresentação, o diretor de programação Cassiano Elek Machado explicou que Coetzee aceitou o convite da Flip com a condição de não ter de responder perguntas.

O acordo foi explicado ao público que, em parte, não conseguiu evitar a frustração.

"Que sujeito antipático!", "Arrogante!" e "Só porque é Nobel!" foram alguns dos comentários que circulavam entre as pessoas que acompanharam sua leitura, revoltadas justamente porque o autor apenas leu e não chegou a conversar com a audiência. Mas esse "apenas" é relativo.

Coetzee não costuma aceitar convites para eventos literários e é avesso a badalações sociais. Sua recusa em comentar a própria obra é quase tão célebre quanto ela mesma.

Sem performance

A disposição em vir ao Brasil para a Flip – e ainda ler trechos de um livro que não saiu nem no mercado anglófono – foi a maior atenção que um grupo de leitores poderia receber de Coetzee.

O problema é que muitos no público esperavam uma performance. Algo como fez o britânico Will Self na quinta-feira, contando piadas e arrancando gargalhadas de todos.

Com meia hora de leitura, uma mulher sentada nas primeiras fileiras virou para a outra: "Ele não vai falar nada?". Pergunta sem sentido porque Coetzee estava falando e, por meio de sua obra, dizendo muito.

A leitura teve base em trechos de Diário de um Ano Ruim, um romance com características de ensaio – traduzido para a Flip por José Rubens Siqueira –, semelhante a um de seus títulos anteriores, Elizabeth Costello, de 2003. O livro novo, nas palavras do autor (sim, ele foi além do "boa noite" e "obrigado"), é dividido em "Opiniões Fortes" e "Opiniões Brandas".

O primeiro grupo aborda temas como o corpo, a matança de animais e o ato de pedir desculpas. O segundo transita por pássaros, erotismo e Dostoievski.

"O livro consiste em um grupo de pequenos ensaios. Podemos chamar de reflexões, pensamentos ou meditações. Mas eu chamo de opiniões", explicou o sul-africano. O ano ruim em questão começa em 2005 e termina em 2006. Todas as opiniões foram escritas por um homem em seu diário como resultado de "paixões e eventos". Cada uma tem a sua própria história e, reunidas, elas "pertencem ao tempo".

Além de vencer o Nobel de Literatura em 2003, Coetzee – a pronúncia em africânder fica próxima de "coutsía" – é o único autor na História a ter vencido duas vezes o Man Booker Prize, o mais importante para livros escritos em inglês. Em nenhuma das duas ocasiões foi receber a láurea pessoalmente. Ele apareceu na cerimônia do Nobel, mas fez o discurso mais curto em todos os 107 anos de existência da Fundação Alfred Nobel. O comentário em Parati é que Coetzee decepcionou. É possível que ele tenha sido apenas coerente com tudo o que escreveu na vida.

Dono de uma obra contundente e pessimista (ou realista, dependendo do ponto de vista), talvez não tenha a urgência de se sentar diante de uma platéia para responder perguntas do tipo "como você se tornou escritor?".

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