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Aristóteles abre seu tratado sobre a política afirmando que o homem só faz aquilo que considera certo, e que toda sociedade se forma pela esperança de um bem. Cada vez que encontro alguém ouvindo música em particular, mas pondo o volume em decibéis coletivos, especulo se o filósofo de Estagira – como eu ouvia nas minhas saudosas aulas de Filosofia do Colégio Estadual – estaria realmente certo de colocar nesse pressuposto otimista a primeira pedra de seu tratado. Há sempre a solução policial, criminalizando o cidadão – em área residencial, não é permitido alguém ouvir música acima de tantos decibéis, e ponto final. Mas o que me interessa aqui é específico: o que vai na cabeça do infrator? Ao ouvir sua música com o botão do volume no máximo, na rua, no quintal, no apartamento, no piquenique, como devemos avaliar o gesto do melômano?

Vão algumas hipóteses. A) Trata-se de um gesto de revolta: indignado contra a placidez do povo brasileiro, que não faz nada para mudar a triste situação do país, o cidadão põe a música no último volume. B) Uma agressão: por algum motivo, o cidadão sente um desejo intenso de agredir as pessoas, a pauladas, tiros ou pontapés, mas sabe que isso é errado; se a vontade prossegue indomável, ele usa os decibéis como arma branca, porém inofensiva, porque ninguém morrerá de música alta. No máximo, o cidadão ficará surdo, quando o problema deixará de existir. C) Por espírito de solidariedade: amante da música, apaixonado pelas melodias que dão transcendência e profundidade à sua vida, o cidadão quer dividir sua alegria e felicidade com todos os vizinhos; pondo a música no último volume, todos partilharão gratuitamente de seu êxtase estético. Na cabeça dele, só pessoas ignorantes ou egoístas não saberão apreciar o seu gesto humanitário, que, à falta de gratidão, automaticamente de transformará no item B. D) Por exibicionismo, esse pecado venial da condição humana, que pode ser simplesmente traduzido por "olha eu aqui!". Há um toque emocional neste pedido, um subterrâneo sentimento afetivo querendo vir à tona, um desejo de comunhão. Mas, como as pessoas em torno parecem incapazes de perceber a boa intenção oculta nos 90 decibéis, o gesto cai também no item B – "vocês vão ouvir agora, seus panacas!", e o volume vai a mil.

O interessante é que não existe relação nenhuma entre os vândalos musicais e seu padrão econômico, como algum preconceito poderia indicar. Lembro de um texto maravilhoso de Dalton Trevisan contra as "trombetas do inferno" acabando com a paz na Ubaldino – na verdade, era apenas uma igreja respeitável com música ao vivo. Agora, reforçando a maldição do Alto da Glória, é uma barraca na piscina de um prédio da Comendador Macedo que, nos outrora tranquilos e felizes sábados à tarde, partilha com o mundo seu pagode ao vivo. Não há Aristóteles que explique.

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