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Um dos clássicos legados culturais das ditaduras é a criação do "inimigo interno". É a ideia de que a nação tem inimigos secretos, conspiradores que lutam para derrubar não só o governo – o que seria óbvio demais –, mas os próprios "valores do povo". Historicamente, todos os poderes políticos e militares na América Latina se fizeram sobre essa polarização, que aliás é velha como as pedras. Que os povos têm inimigos, é só começar pela Bíblia para descobrir, mas esses sempre foram classicamente os estrangeiros – outra tribo, outra "raça", outros deuses.

Entre os hispânicos, a sombra opressiva da Espanha alimentou o espírito libertador, com complicações internas não desprezíveis. A dominação espanhola se foi, mas ficou o fantasma do inimigo, que ganhou não só tintas raciais – separando indígenas, mestiços e "crioulos" (nativos de "pura" ascendência espanhola) –, mas também ideológicas (reagindo à velha política invasiva e espoliadora dos Estados Unidos), e ambas se misturam num imbróglio que fornece todos os álibis a quem está no poder.

Há algo de patético nessa fúria revolucionária que divide os países em dois, não no terreno das ideias, mas de um emocionalismo arcaico repleto de complexos; a figura de Bolívar, por exemplo, um "crioulo" iluminista que nutria profundas desconfianças do poder popular, serviu de gancho para o chavismo.

No Brasil, temos um longo histórico conciliador, a partir da própria independência: dom Pedro I, depois do grito do Ipiranga, viria a ser rei de Portugal. Olhando de certo jeito, a nitidez nunca foi uma característica nossa; parece que gostamos desta simplificação apaziguadora, que sempre muda aqui e ali para tudo continuar na mesma. Assim, há diferenças substanciais entre o mundo hispânico e o brasileiro. Por mais violentas que tenham sido as nossas guerras internas (como em Canudos), um discurso conciliador mantém-se permanentemente à tona. Afinal, todos os políticos do Brasil são "de esquerda", variando apenas o grau – e fora dela resta uma ou outra figura pitoresca. Não é uma coisa simples de analisar; não sei o que há de bom ou mau nesse eterno traço conciliador. Por intuição, acho que ele tem qualidades importantes em alguns aspectos da vida cotidiana, e alguns defeitos terríveis quando se cristaliza na vida política.

Três exemplos, neste momento em que começa a ser discutida a próxima eleição presidencial: Eduardo Campos faz parte do governo e se coloca na oposição; Guilherme Afif Domingos é simultaneamente vice do Alckmin e ministro da Dilma; e o gigantesco e inclassificável PMDB tem a cara que o freguês quiser, sob encomenda. Todo mundo se mexe, mas a última coisa que passa na cabeça de alguém é que uma eleição para presidente tem de, no mínimo, contrapor algumas ideias. Como assim, cara-pálida – "ideias"?! O que é isso, companheiro?

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