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Entre as muitas conse­­quências do advento da in­­ternet, prolifera uma curiosa fusão das linguagens, ou talvez, melhor dizendo, a criação de novas funções e novos gêneros da linguagem. O primeiro deles já é quase arqueológico de tão popular: o e-mail. Ainda bem que não sou saudosista – se eu vivesse chorando o pas­­sado, diria que o e-mail enterrou para todo sempre o gênero de escrita que em boa medida me ensinou a escrever: a carta.

A carta é uma forma literária clássica, cuja composição é em si uma lenta divisão do tempo – ela era escrita para ser entregue pelo menos dois ou três dias mais tarde. A carta pressupunha um tempo lento, cadenciado; escrever uma carta era também fazer uma síntese e um retrospecto de uma semana, de um mês, de acontecimentos demorados que, linha a linha, o escriba organizava na cabeça. Uma carta punha ordem e perspectiva no mundo; os fatos se organizavam em bloco e eram explicados em parágrafos. Não lembro de nenhum momento em que senti necessidade de escrever rsrsr para indicar que eu estava rindo naquele momento; no máximo, um discreto ponto de exclamação. Quem escreve carta é sempre um "narrador", alguém a distância, e não uma pessoa ao vivo.

No entanto, a carta também era uma conversa. O amigo ou a namorada ou o tio o pai abriam o envelope (outro ritual – sempre evitei rasgar o selo; havia um objeto chamado "corta-papel", ho­­je peça de museu), sentavam numa cadeira, tranquilos, e ficavam sabendo com um grau razoá­­vel de ordem da vida do outro. Às vezes tinham vida longa, passavam de mão em mão pela família e amigos, Veja como o Toninho está bem! – e às vezes, secretas, eram imediatamente trancadas na gaveta para uma releitura solitária, suspirante e saudosa. Carta não tinha vírus nem pegadinhas; se por acaso chegassem fotos obscenas ou sugestões de invasão de privacidade, era bem possível que o envelope fosse parar na po­­lícia – ou nos filmes policiais, em que cartas anônimas sempre brilharam como personagens poderosas. Sim, cartas eram conversas, mas sóbrias, com a noção de hierarquia e de espaço, o tempo e o espaço sempre organizados: Curi­­tiba, 7 de novembro de 1956. Que­­rida Maria: – e se­­guiam-se as notícias. As cartas foram também uma marca histórica da vida individual, da afirmação pessoal; e, transformadas em literatura, muitas vezes se revelaram um retrato ético da sua época. Um exemplo maravilhoso é o romance epistolar As relações perigosas, do francês Choderlos de Laclos (1741-1803), que, ao deixar entrever a dissipação moral da nobreza da França, ajudou a fermentar o caldo em que pouco depois explodiria a Revolução Francesa.

Mas eu me entusiasmei tanto para relembrar a carta que não deixei espaço aos e-mails e blogs, gêneros de um novo tempo, que funcionam, e bem, com outra lógica. Fica para uma próxima carta – digo, crônica.

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