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Ao escrever O processo civilizador (Editora Zahar), o pensador alemão Norbert Elias (1897-1990) não focou sua obra na evolução das ciências ou das artes, como poderia parecer óbvio, mas na gradativa mudança da etiqueta social e do que se chamaria "boas maneiras" durante a passagem da Idade Média para a Renascença e séculos subsequentes. Numa era em que questões de saúde e de higiene nem remotamente se colocavam, detalhes como o advento dos talheres (quando o normal era comer com as mãos), o uso de guardanapos e as práticas de cuspir no chão ou urinar em público (e como elas foram sendo "disciplinadas" ao longo do tempo) são analisados em minúcias.

Em outra obra, A sociedade de Corte (Zahar), Elias estuda o aparato da etiqueta e seu papel na constituição do Estado moderno, a partir de Luís XIV, o Rei-Sol. Nos salões da nobreza, os gestos de cortesia chegavam ao limite do ridículo, pelo menos para quem observa sob o olhar de hoje. A história prova, entretanto, que foram as nações "bem educadas" as que mais produziram arte e ciência nesses últimos cinco séculos.

De fato, as marcas da cortesia são elementos fundamentais da sobrevivência das sociedades, desde que os homens saíram das cavernas e as tribos nômades passaram a se estratificar em Estados. Modernamente, as formas da etiqueta são muitas vezes identificadas como as máscaras da hipocrisia, e tendemos a ver na sua quebra sinais de "autenticidade". Mas a essência da cortesia, em qualquer lugar do mundo, é o simples respeito ao outro. Sim, a hipocrisia pode estar na alma dos gestos "bem educados", mas não é função da etiqueta dar lições de moral – a cortesia é pura forma e pura convenção, e por isso é imprescindível. Ela estabelece um terreno neutro de convivência comum, e controla, sutil, eventuais explosões de selvageria. Todo ato de violência é, antes de tudo, "descortês".

Seria interessante analisar a célebre informalidade brasileira sob o ângulo da cortesia. Lembro que, nos anos 60 e 70, a "falta de educação" tinha lá seu charme revolucionário, pelo rompimento de tudo que lembrasse tradição, mas naqueles tempos a contestação pelo comportamento era um traço globalizado. No Brasil, entretanto, essa marca permaneceu e se multiplicou. Os Estados também têm sua etiqueta, e nossa ditadura foi tosca e grossa, como toda ditadura. Isso deixou rastros. A forte urbanização que avançou concomitante ao período militar não favoreceu a cortesia. A vida rural tende a estratificar formas pacíficas de convivência interpessoal que se esfarelam na abstração e no anonimato urbanos.

E a onipresente cultura do automóvel, potencializando a estupidez, é outro fator que não nos ajuda no processo civilizador. Nossa cantada "informalidade" é que é, na verdade, hipócrita – ainda somos um país imerso na selvageria.

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