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 | Gilberto Yamamoto
| Foto: Gilberto Yamamoto

Há muitos e muitos anos, no tempo em que os animais falavam, eu tinha boa memória. Até os vinte e poucos anos, lembrava até de quem assinava a orelha dos livros, enumerava bibliografias completas com anos de lançamento, tradutores obscuros, edições desaparecidas e até o capista. Lembro de uma noite em que brilhei na Boca Maldita, só por ser o único a lembrar que havia, sim, uma tradução do último romance de William Faulkner chamada Os desgarrados, na capa uma linda aquarela de Eugênio Hirsch, que fazia aquelas capas revolucionárias da editora Civilização Brasileira, quando o padrão gráfico do livro no país era um horror. Lembro até que o personagem central era Boon Hoggan­­beck, poucos anos depois representado por Steve McQueen num filme de 1969 (só a data, confesso, conferi agora, em um segundo, nesse milagre da internet), que por acaso assisti anos depois. Mas não só isso: sabia também todos os adversários e resultados dos jogos do Brasil na Copa do Mundo de 1958, 1962 e 1966, aquele fracasso na Inglaterra; e tinha certeza absoluta (por isso me tornei definitivamente um cético) de que o Brasil perderia vergonhosamente a Copa de 1970, nem que fosse só para dar uma lição na ditadura. O Brasil e a ditadura triunfaram, e, como se houvesse relação entre uma coisa e outra, fui perdendo a memória.

O engraçado é que esse primeiro balaio de lembranças ficou firme na minha cabeça, tanto que estou aqui recontando sem esforço. Dali para diante, os fatos se embaralham, as décadas se achatam em longos períodos de mesma coisa, mas eu ainda guardava números de telefone na cabeça e sabia relacionar com uma grande margem de acerto nomes de pessoas às imagens correspondentes, como se a vida fosse apenas um desses jogos de cartões que se distribuíam simétricos na mesa, a face oculta, para que se adivinhem os pares.

Mas ultimamente, embora eu ainda saiba o meu endereço de cor e seja capaz de recitar o CPF em blocos ritmados de três em três números (tenho de pegar embalo, digamos, musical; se paro para pensar, erro a sequência), me acontecem vácuos de memória, brancos súbitos e inexplicáveis, lacunas mentais – uma palavra que quero escrever e que está aqui na minha língua, por capricho se esconde teimosamente, onde deixei o diabo dos óculos, qual o nome daquela pessoa que já vi mil vezes, que me cumprimenta com simpatia, e que eu, monstro ingrato, sou incapaz de lembrar?

Não é grave, porque assim como as coisas somem, elas voltam em instantes iluminados. Dizem que esquecimentos são eventos psicanalíticos; na teoria, esquecemos por vingança, haveria um eu secreto em nossa alma conspirando por conta própria, o que aumenta minha aflição. Prefiro achar que é só um pouco de velheira, e muito dessas máquinas que nos tiram a carne e o osso das coisas e nos jogam para sempre numa nuvem abstrata de bits e chips.

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