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A palavra "engruvinhado" não existe – pelo me­­­­nos não encontrei referência nem no Au­­rélio, nem no Houaiss – mas é exa­­tamente assim que estou me sentindo. Não como alguém que não existe, mas engruvinhado mesmo: um conjunto de sensações complexas, todas de natureza negativa, que acontece quando se junta o frio demorado, cons­­­­tante, sem defesa, com a chu­­va demorada, constante, e também sem solução. É um processo mental e físico, que avança pelo dia inteiro com a monotonia da chuva. A alma e o corpo vão se engruvinhando, se vocês me entendem. Fiquei muito surpreso ao descobrir que a palavra que eu uso há anos não existe – até ficaria feliz, se isso automaticamente deletasse o sentimento correspondente, mas fatos não precisam de palavras para designá-los.

Acordar súbito numa manhã de gelo, cortante no rosto, não é tão mau. O barulho da chuva, como sabemos, nos acalma. Há mesmo algo de misteriosamente protetor nas noites de borrasca, quando estamos seguros entre quatro paredes, como se nos ba­­tesse a memória da caverna e de seus prazeres, a tranquila segu­­ran­­ça do lar. Talvez o som da água caindo, por força de alguma conexão mágica, nos ponha em sintonia com o que não mais existe, mas que existiu em algum tempo de que só nossos genes se lembram. O problema é que quase sempre (na verdade, sempre, não adianta disfarçar) temos de fazer alguma coisa que exige botar os pés no chão e começar o dia.

Tudo bem – mas aí, como se não bastasse o prazer que perdemos por não continuar felizes apenas ouvindo a chuva, com a grandeza metafísica de um monge tibetano mas sem nenhuma de suas desvantagens, naqueles longínquos bancos de pedra – temos de enfrentar o frio. E estamos em Curitiba, e portanto é um frio que não respeita paredes, ri dos aquecedores, ataca à traição, corrói a paciência, prende os gestos, estimula topadas e esmaga o humor. Eu imaginava que não existisse mais o clássico "frio curitibano", uma lenda que só sobrevivia por amparo psicológico, algo que nos desse alguma distinção original, mas agora ele voltou com tudo. E mais: com chuva – dizem que foi o julho mais chuvoso desde 1997 –, uma chuva consistente e metódica, que foi acinzentando a cidade e principalmente o olhar.

Decididamente engruvinhado, sofrendo um grau zero de imaginação, derrotado por uma preguiça jurássica, ainda deparo com essa misteriosa gripe suína impedindo a volta às aulas e ao alento de uma vida mais animada para compensar a água e o frio. Para completar, a gripe tem um ar alienígeno ameaçador, ressoando seu discreto toque de histeria diante da sombra de alguma tragédia que não se vê. Para o leigo, parece que há uma desproporção entre o fato e as medidas tomadas, o que aumenta a especulação e as teorias conspiratórias. Ponha-se o frio curitibano, mais a chuva teimosa e um fim de férias que não terminam – e não há mesmo quem não fique engruvinhado.

Cristovão Tezza é escritor.

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