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Espero que essa terça-feira amanheça fria, muito fria, o termômetro descendo perigosamente para o número 9, isso dentro de casa, para ilustrar ao vivo minha crônica. Certamente meu plano não dará certo – nosso clima, como sabemos, não é confiável, e basta querer o frio, mesmo que por motivos egoístas, que ele não virá. Tudo para dizer que uma das marcas da paixão que eu aprendi a alimentar por Curitiba ao longo de cinquenta anos é o frio. Na verdade, era o frio, que me animava. Mas nessa altura da vida, em que tudo dói com mais capricho numa conspiração sinistra, começo a detestá-lo, a odiar esse gelo que chega à raiz da alma e que eu pensava já desaparecido pelo aquecimento global. Os verdes que me perdoem, mas que venha logo o aquecimento, senão global, pelo menos aqui nas redondezas.

Só de uma coisa eu gosto no frio curitibano: o azul que vem junto, quando calha de passar a chuva e a umidade. É raro acontecer, mas às vezes acontece – um céu de brigadeiro, azul inteiro, tão forte e nítido que parece não fazer parte da natureza; e junto com ele, é claro, vem o frio. Corremos para uma réstia de sol, aliás inútil, como um bicho acuado. O azul é a chave – é dele que alimentamos algum prazer, encarangados no paletó, e olhamos para o alto, como se lá do céu pudesse vir algum calor só pela força da súplica.

Não vem. O frio curitibano é lento, agudo, vingativo, súbito. Claro, ninguém tem defesa contra ele – o Brasil tropical não deixa popularizar os sistemas de aquecimento. Tenho certeza absoluta de que se eu implantasse calefação aqui em casa, passaríamos 10 anos de verão curitibano, nem um só dia frio para testar o sistema. Basta comprar lenha para a lareira, que os tocos ficarão empilhados meses na sala, vítimas da onda de calor que invadirá a cidade. A solução não é solução: os tais aquecedores elétricos são sempre derrotados pelo pé direito alto, portas abertas, sobrecarga de luz – e lá temos de arrastar a geladeira, vela acesa na mão, para religar o disjuntor que caiu. Dois passos adiante já está frio de novo. Encasacado, pulôver sobre pulôver, ceroulas e camisetas, meias de lã, e mesmo assim o pé gelado, movo-me como um velho urso reumático – tudo irrita. Uma topada, um leve bater de dedos na quina da mesa, e você chora. Só o banho aquece, mas entrar e sair dele é uma tortura medonha. Para minha desgraça, a civilização estabeleceu que devemos tomar um banho por dia, depois de 30 séculos tranquilos. Para tudo o mais se dá um jeito na vida, exceto escapar do banho diário, uma invenção de índios. Única salvação, entregar-me inteiro à preguiça, essa deusa sensual e mal-falada. Como cada gesto se trava no caminho, a cidade inteira um iglu, a preguiça é uma dádiva.

Sonho com não fazer nada, quentinho sob as cobertas, pensando na vida que não começa enquanto o frio não passa – única angústia, a crônica atrasada que preciso entregar.

Cristovão Tezza é escritor.

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