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Sempre senti Moacyr Scliar como um escritor curiosamente da minha geração. Começou a publicar so­­mente nos anos 70, passando a ocupar um novo espaço na narrativa brasileira depois do domínio por décadas dos conhecidos clássicos brasileiros do século 20, a constelação formada em torno de Graciliano Ramos, Jorge Amado, Clarice Lispector, Guimarães Rosa. Por ser gaúcho, representava um contraponto ao então império do chamado "eixo Rio-São Paulo", assim como Dalton Trevisan já se tornara, desde os anos 1960, com "Cemitério de elefantes", a referência obrigatória de Curitiba no cenário do país.

Minha leitura de O centauro no jardim, de 1980, foi impactante. A história do colono judeu que tem um filho centauro conciliava a liberdade da fábula e da fantasia, terreno em que Scliar era um mestre, com um olhar realista, sem retórica, volteios estilísticos ou ênfase. Um contador de histórias radical que falava inventando, e essa foi sua marca. Ao mesmo tempo, o livro dava tematicamente uma dimensão universal à literatura brasileira, pela sua raiz judaica. Era o exotismo da imaginação, e não dos nossos velhos clichês. Como linguagem, tratava-se de um contador de histórias de uma límpida simplicidade, o que por si só abria um caminho original, de substância urbana, para o nosso romance. Lembro que nessa época, escritor iniciante, mandei a ele a primeira edição de Juliano Pavollini, e recebi uma carta de uma generosidade para mim surpreendente.

Em 1997, Scliar publicou A majestade do Xingu, talvez o seu melhor romance. A história de um judeu russo que, no leito do hospital, conta a sua vida desde que veio ao Brasil em 1921, é a síntese do talento de Moacyr Scliar. O personagem queria ser Noel Nutels, o célebre sanitarista – passou a vida desejando ser um "duplo". Humor e tragédia se mesclam nesse romance, que repassa momentos importantes da história brasileira (um pano de fundo que estaria presente em muitos livros de seus livros, como o último, Eu vos saúdo, milhões, o relato de um comunista que sai do interior gaúcho para trabalhar no Cristo Redentor). E há as suas "reconstruções bíblicas", em que Scliar submete o peso da cultura judaica a um olhar absurdamente contemporâneo, como o maravilhoso A mulher que escreveu a Bíblia.

Vi Scliar pela última vez na Feira do Livro de Ribeirão Preto. Numa mesa-redonda com Carlos Heitor Cony, ele contou um episódio saboroso da vida de seu pai – ao desembarcar no Brasil, no início do século 20, estava ansioso por conhecer a banana, essa fruta mítica para o imaginário europeu. Era o próprio pai que lhe contava: sem saber o que fazer quando lhe ofereceram uma banana, ele abriu a fruta cauteloso, tentando adivinhar seu segredo, jogou fora o "caroço" e comeu a casca. Dessas lembranças maravilhosas, dizia Scliar, nasceu o escritor – de que sentiremos muita falta.

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