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 | Gilberto Yamamoto
| Foto: Gilberto Yamamoto

Herdei de minha falecida mãe o horror aos bancos, aos quais ela só ia arrastada para devolver cartões não solicitados e atualizar cadastro. Mas semana passada tive de fazer a derradeira via-crucis bancária da dona Elin: fechar suas contas, na qualidade de inventariante. Tirei o dia ensolarado para "deixar tudo certinho", como dizia ela, que detestava largar coisas pela metade. No Itaú, fechei a conta em 17 minutos cravados. Corri para a Caixa Econômica e levei outros 20 para resolver tudo. Tive a sensação rara e agradável de que o país está funcionando. E então adentrei o Banco do Brasil para onde sua pensão de viúva havia sido arremessada, anos atrás. Sempre que encontro uma agência amarelinha lembro do verso de Dante: "Abandonai toda esperança, vós que entrais". Peguei a senha, de mau presságio: 13. Ao ser chamado, percebi em segundos que estava diante de um Pequeno Burocrata. O leitor certamente já viveu essa experiência excruciante. É um ser solitário que se alimenta, sorridente, da irritação e do sofrimento alheios. Discreto, sedentário, de fala mansa, o Pequeno Burocrata tem por habitat preferencial as repartições oficiais, onde ele se incrusta, lento e poroso, em mesas e balcões de contato com suas vítimas. Esse é o seu trunfo, na corrida das espécies: pela camuflagem perfeita, o Pequeno Burocrata não precisa procurar alimento. A caça vai a ele, indefesa.

O Pequeno Burocrata ouve seu pedido, e sorri – a sobrevivência dele depende daquele pedido. Ele vai infernizar a sua vida. O Pequeno Burocrata contemplou a escritura do inventário, com carimbos, selos e assinaturas dignos de um título do Império, e telefonou ao Ofício de Notas para conferir se, de fato, ela era "quente". Sim, é quente, disseram. Resolvido? O Pequeno Burocrata coça o queixo, indócil, e tem uma ideia: "É preciso reconhecer a firma do cartorário que assinou a escritura original." Eu teria de levar o documento a um segundo oficial de notas que declarasse que o primeiro é verdadeiro. Respirei fundo e saí. Percorri cartórios e consegui, enfim, um carimbo, um selo e uma assinatura adicionais. Voltei e esperei mais 40 minutos. Ele releu várias vezes o documento duplamente certificado da minha mão, conferindo-me "todos os poderes que se fizerem necessários para representar o espólio em juízo ou fora dele, podendo praticar todos os atos de administração dos bens", etc., etc., e, iluminado, decide revogar o Código Civil e me diz agora que aquilo não serve para nada. Eu precisaria de uma outra procuração de cada um dos irmãos, passada em cartório, dando-me autorização para fechar a conta.

É a vitória final do Pequeno Burocrata: você perde a cabeça e diz um monte de desaforos. Ele sorri, alimentado, ganhando o dia, já de olho na próxima vítima, sentadinha adiante com a senha na mão. Mas não desisti, dona Elin; fique tranquila. Recorri à Ouvidoria do Hades e tenho grandes esperanças de libertá-la deles.

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