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Um dos meus apelidos de juventude era "pavio curto" – aquele sujeito irritadiço que à mínima provocação solta os cachorros. Como eu era adepto da vida natural, que é naturalmente selvagem, via em mim uma qualidade nessa impaciência agressiva. Felizmente o correr dos anos, o endurecimento do couro e a ro­­tina de professor foram aparando as arestas de modo que, hoje, me sinto um tranquilo mon­­ge zen-budista. Essa é a vantagem da civilização: ela nos educa para a vida em comum. É só ter um pouquinho de paciência.

Mas o pavio curto não desaparece – ele só é controlado. Sú­­bi­­to, vem à tona, e custamos a reconhecer o sujeito que explodiu há pouco e só agora volta a respirar normalmente. Somos uma pequena jaula, e às vezes a porta se abre. Pode ser uma simples sensação de mal-estar diante do noticiário – por exemplo, a boçalidade (a palavra é dura, mas não en­­contrei outra mais adequada) do nosso presidente ao comentar, em visita a Cuba, a morte do dissidente cubano pela greve de fome: "Por que não mandou uma carta?" Em seguida, compara-os a criminosos co­­muns. A geração dos anos 60 foi tudo, exceto cínica. Respiro fundo – em breve te­­remos uma visita do Lula ao Ahmadinejad; é preciso manter no estômago uma boa reserva zen.

Às vezes o bolso dói e o pavio ex­­plode. Exemplo: conta de celular. Fico pensando que estranha privatização socialista fizemos que, com meia dúzia de gigantes competindo, chegamos todos aos preços mais altos do mundo, contratos confusos, publicidade en­­ga­­nosa e atendimento público digno de repartições da União Soviética. Fui pegando um horror de reclamar por telefone – aqueles robôs repetindo frases-feitas, uma voz empurrando pa­­ra outra, caindo a linha a todo instante, os "obrigado por esperar" que despertam meus piores palavrões (controlados – o cronista é zen), e nenhuma solução. A "taxa de irritação" vai lá em cima, o pavio fritando. Recente­­mente, apertei uns botões no celular e entrei na web, por acaso, sem conseguir de fato abrir na­­da porque a conexão era horrorosa. Conta: 2 megas de uso da web, R$ 149 (só nesse item). Se de fato eu estivesse baixando um música de mp3 de 3 minutos, pagaria R$ 210 por ela. "O senhor não leu o contrato?", alguém me disse, acusador. E passou o nú­­mero do protocolo da minha reclamação: 8169524308903128287. "O se­­nhor quer que eu repita?"

Outro momento duro foi fa­­zer a compra do mês num grande supermercado de uma rede internacional, passar tudo pelo caixa, sacolas caprichosamente ajeitadas no carrinho, e na hora de pagar ouvir a informação: "Hoje não estamos aceitando nenhum cartão. O senhor não leu o aviso?" O aviso era uma cartolina amarela escondida no meio de 30 cartolinas amarelas de publicidade, na entrada do supermercado. Respirei fundo. O único perigo é que, tratados co­­mo gado pelo capitalismo tupiniquim, nosso lado zen acabe por se transformar numa aura zumbi.

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