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Tenho um pé maior que o outro. Até aí, tudo bem – nada que afete a curiosa simetria da forma humana. Um deles tem alguns milímetros a mais do que o outro, o que não é nenhuma tragédia socialmente mensurável. O fato é que, às vezes, como todo mundo, eu tenho de comprar sapatos novos. Essa é uma realidade infernal. Morro de inveja dos índios, que saem por aí de pé no chão e todo mundo acha bonito.

Entrar numa loja de sapatos é uma tortura anunciada. Tenho pena do atendente solícito, sorridente e feliz, antevendo naquele senhor em pânico que acabou de assomar na loja a garantia de uma boa venda. Eu até tento fazer a coisa certa, conferindo antes os modelos na vitrine que chegam a me animar. Seria fácil demais, assim de primeira – a loja nunca tem o meu número; pelo menos não para os dois pés. Mas não é isso que me incomoda. É o esforço do atendente, subindo aquela escadinha misteriosa no fundo da loja e voltando do buraco com metros de caixas no ombro, várias vezes, que vão se desfolhando no chão para mim, e chega um momento em que eu não posso mais desistir. Não seria justo eu fazer o sujeito trabalhar tanto e depois sair dali sem comprar nada. Parece que ele sabe disso, e explora cruelmente a minha fragilidade emocional, derramando mais sapatos em torno; já não posso me mover.

A desgraça é que um pé aperta no dedão, outro no calcanhar, outro é frouxo demais, aquele marrom esmaga os dedos, o com a fivela só entra com calçadeira de aço, o modelo sem cadarço parece um chinelo solto; às vezes, o pé direito é perfeito, mas o esquerdo não dá certo, ou vice-versa. Várias vezes perguntei seriamente se eu poderia comprar o pé direito 41 e o esquerdo 42, do mesmo modelo (talvez mesmo um pouco diferentes, desde que da mesma cor), mas eles nunca topam.

O sorriso do atendente vai virando um esgar ainda com um resto de simpatia e ele já olha com inveja seus colegas que atendem fregueses mais lucrativos. As caixas vão e vêm, abrem-se e fecham-se, as cores variam, os modelos são muitos, e eu me sinto um canalha, um sujeito que está ali só para aporrinhar a vida dos outros, aquele entulho de caixas e sapatos esparramados à frente, por que entrei aqui, meu Deus – e procuro em volta a salvação.

Quem sabe um tênis, uma saída honrosa! Preciso mesmo caminhar no projeto de reestruturação física pós-50 anos! Meus olhos devassam ávidos a prateleira em frente, e então começa o desfile daquelas naves espaciais em forma de tênis, tênis com molejos, luzes coloridas, cores berrantes, solas cubistas – e não será dessa vez. Mas a vergonha não chega a ser total; sempre tomo o cuidado de levar meia dúzia de meias, um cinto, uma caixinha de lenços. E também uma pasta preta milagrosa que me oferecem, com esponjinha embutida, e que vai deixar meu velho pisante – tão maravilhoso, tão confortável, nascemos um para o outro – como novo.

Cristovão Tezza é escritor.

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