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 | Henry Milleo/Gazeta do Povo
| Foto: Henry Milleo/Gazeta do Povo

Vários autores já ouviram a alma das ruas. João do Rio foi o mais célebre, com a Alma Encantadora das Ruas, relatos das ruas do Rio de Janeiro do início do século 20. Entre os paranaenses, notável foi a poeta, escritora e pintora Maria Nicolas, alma curiosa que nos deixou o mais completo inventário urbano de Curitiba, os volumes da Alma das Ruas.

Mestra de várias gerações, dona Maria Nicolas foi uma incansável pesquisadora das coisas de nossa cidade (como registrou o jornalista Aramis Millarch em junho de 1988, quando a perdemos), “a quem se deve milhares de biografias de pessoas que, embora perpetuadas em placas nas ruas da cidade, de nada se saberia se não fosse o seu esforço – raramente reconhecido”.

Assim como a Rua Ratclif, as ruas deviam ter nomes com prazo de validade

Só reconhecida com um nome de rua no Sítio Cercado, hoje a humilde professora ficaria um tanto desconcertada com o desejo de Rafael Greca de Macedo, o antigo amigo e discípulo que pretende criar a Rua da Cerveja na Rua Carlos de Laet. Por certo nenhum familiar do poeta e jornalista carioca Carlos Maximiliano Pimenta de Laet (1847-1927), ferrenho monarquista, iria reclamar das libações etílicas naquela rua do Boqueirão. Assim como raríssimos iriam botar a boca no trombone se a municipalidade fizesse uma completa revisão ampla, geral e irrestrita dos nomes de ruas e avenidas de Curitiba. Começando pela Rua Riachuelo, que deveria se chamar Rua do Vampiro de Curitiba, em memória da esquina com a Rua São Francisco. E o que fazer com a Rua Bruno Filgueiras? Com suas seguidas interseções, provoca o caos na cabeça dos motoristas de táxi. Como um bicho de sete cabeças, ela poderia perfeitamente abrigar alguns outros nomes.

Curitiba, sempre louçã e renovada, ainda reverencia o Beco do Mijo – que não é beco, é a Travessa Padre Júlio de Campos, nos fundos da Catedral Metropolitana – e já teve outros dois locais com nomes de igual teor: o Beco do Inferno e a Rua da Merda. Dois logradouros públicos que não resistiram per omnia saecula saeculorum por duas razões: vizinhos da Catedral, o beco era uma tentação do diabo aos coroinhas e a rua se fazia desconfortável ao olfato de quem rezava a missa.

Na geografia do prazer, o pecado morava ao lado da Catedral. Um pouco mais adiante, cruzando a Praça Tiradentes e a Rua das Flores, na retaguarda do hoje Palácio Avenida havia uma outra rua de escassa iluminação pública onde, com apenas uma batidinha na porta, o distinto cavalheiro se escondia entre os panos das solteiras do reino – nome que os portugueses davam às suas prostitutas. Naquele incipiente mapa de Curitiba, primeiro ela se chamava Rua Ratclif – um portuga que morreu enforcado na Revolução Pernambucana e que não tinha nada a ver com o Paraná – e algum tempo depois foi justamente rebatizada de Desembargador Westphalen.

Assim como a Rua Ratclif, as ruas deviam ter nomes com prazo de validade. A Rua Visconde do Rio Branco, por exemplo, se dependesse dos seus moradores e passantes, se chamaria Rua do Vento Encanado: nas três quadras entre a Saldanha Marinho e a Emiliano Perneta, a Visconde do Rio Branco é seguramente o passeio mais refrigerado de Curitiba. Por esses dias de calor senegalesco, a Rua do Vento Encanado é um oásis. São os espíritos das ruas. Na Praça Tiradentes com a Cândido Lopes, num outro exemplo, o microclima é tão peculiar que deveria se chamar Colina dos Ventos Uivantes. É tão glacial quanto a Praça da Ucrânia, lá onde a bruma faz a curva.

Se por motivos diplomáticos ou políticos não for possível mudar a placa, vamos adotar nomes populares para marcar a peculiaridade de certos caminhos. É o caso da Avenida Cândido de Abreu, a grande artéria do Centro Cívico. Se dependesse da vontade popular, se chamaria Rua da Amargura.

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