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O jurista, sociólogo e historiador Raymundo Faoro (1925-2003), na obra Os Donos do Poder, descreve como o Estado brasileiro e a burocracia que o administra sempre trataram o país como uma propriedade particular. Essa estrutura patrimonialista, herança da coroa portuguesa, para quem o Estado era um negócio do rei, foi reproduzida na Colônia e se manteve no Império e na República. Como consequência, o capitalismo nacional foi politicamente orientado; e a distribuição de riqueza se deu sobretudo àqueles que se associaram ao aparato estatal. Isso impediu a emergência do liberalismo clássico e, por extensão, de uma democracia forte no Brasil.

Faoro analisou a história brasileira até a Ditadura Vargas (1937-1945). Mas a descrição ainda é atual. O descolamento entre Estado e sociedade se repete em pleno regime democrático, tanto na esfera política como econômica. Isso se revela em fatos como a resistência do Congresso em aprovar projetos de efetivo interesse popular e os privilégios dos agentes políticos e governamentais. O tratamento diferenciado na prisão para os mensaleiros em relação aos demais detentos, por exemplo, indica que o país é desigual mesmo quando faz justiça.

Dois fatos recentes na esfera econômica – a validade dos créditos de celular pré-pagos e o julgamento dos expurgos da poupança – evidenciam como a burocracia se articula para defender os interesses dos grupos privados que se associam ao Estado, em detrimento da população.

Em agosto, o Tribunal Regional Federal da 1.ª Região (TRF1) determinou que as empresas telefônicas não poderiam estabelecer um prazo de validade para os créditos de celular. O argumento era de que, se o usuário pagou antecipadamente pelo serviço, não poderia ter bloqueado seu direito de usar o serviço que comprou. Mas a decisão foi cassada em outubro pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). O mais surpreendente é que o recurso foi apresentado pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) – a entidade que deveria proteger o consumidor. A Anatel alegou que a inexistência de validade dos créditos poderia ser prejudicial ao próprio cidadão, pois as tarifas seriam aumentadas.

A tentativa de culpar a sociedade pela "ruína futura" também aparece no recente manifesto assinado por 13 ex-ministros da Fazenda e 11 ex-presidentes do Banco Central pedindo para o STF não dar ganho de causa aos correntistas da poupança lesados pela correção monetária dos fracassados planos econômicos dos anos 80 e 90. Os ex-dirigentes da economia, representantes de todos os governos desde a ditadura, argumentam que o pagamento dos prejuízos dos poupadores irá quebrar o sistema bancário e, consequentemente, o país. A culpa, então, é da vítima?

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