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É possível estabelecer uma causa comum para fatos tão diversos no dia a dia do país como a reconhecida hospitalidade brasileira a estrangeiros, a violência no trânsito e os recorrentes casos de nepotismo no poder público? A resposta é sim, por incrível que pareça. E não somente isso. Essa causa é tão absolutamente onipresente em nossas vidas a ponto de definir a identidade nacional e a responder à grande pergunta: quem afinal somos nós, os brasileiros? É possível ainda dizer que essa característica de personalidade é a razão de nossos maiores defeitos e virtudes ao mesmo tempo.

O historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) definiu a "cordialidade" como o traço fundamental do caráter brasileiro. Mas o conceito de "homem cordial", para Holanda, não é aquele que mais comumente nós estamos acostumados a imaginar – ou seja, o de alguém gentil. A "cordialidade" no pensamento do historiador vem da origem da palavra no Latim: o termo "cordes", que significa coração. O brasileiro, para ele, é alguém que age antes pela emoção do que pela razão. Nosso apego à família e aos amigos é resultado dessa personalidade afeita à emotividade. Também dela resulta a hospitalidade com que recebemos os estrangeiros e imigrantes – nossos "amigos" de fora.

Mas, se a cordialidade garante a vitalidade da instituição familiar – a base de qualquer sociedade –, ela também é a causa de nossos males como República. Sérgio Buarque de Holanda observou que, na cabeça do brasileiro, a amizade e a família justificam a transgressão da lei e do bom senso público. Em outras palavras: no Brasil a vida privada invade a esfera pública.

Não é à toa que o nepotismo seja algo tão persistente no país e que parlamentares federais destinem, sem o mínimo pudor, passagens aéreas pagas com dinheiro público para familiares e amigos viajarem. Ou como bem exprimiu o deputado Edmar Moreira, aquele do castelo de R$ 25 milhões no interior de Minas Gerais: "Nós (os parlamentares) temos o vício insanável da amizade". Enfim, é a realização máxima do ditado popular: "Aos inimigos, a lei; aos amigos, tudo". E, neste contexto de permissividade em relação à legislação e ao bem público, não é de estranhar que também floresça a corrupção.

Mas passar por cima das normas sociais não é uma característica apenas dos políticos. No cotidiano, estamos acostumados a ver infrações cometidas por quase todos. Talvez o trânsito caótico e violento seja o exemplo perfeito de como o mais simples dos cidadãos também pode se igualar aos políticos quando tem de cumprir a lei. O motorista age nas ruas como se estivesse em casa, seguindo suas próprias regras.

O antropólogo contemporâneo Roberto DaMatta define o dilema nacional exatamente como a confusão entre a "casa" (a representação da família e dos amigos) e a "rua" (o espaço público). Superar esse dilema sem que percamos o lado bom de ser brasileiro é o desafio que teremos de enfrentar.

Fernando Martins é jornalista

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