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– Leu João Ternura?

– Quem?

– João Ternura, Aníbal Machado...

– Quem, Machado?

– Aníbal. Talvez o fato de ser o pai de Maria Clara Machado lhe dê alguma pista...

– Quem?

É, não adianta. E com toda a carga de irritabilidade à flor da pele que o tem caracterizado nos últimos tempos, Natureza Morta encerrou o papo.

– Good night, and good luck.

– Como disse?

Procede a sugestão do Natureza: mergulhar na leitura do mestre Aníbal Machado. Ele escreveu muita coisa, mas João Ternura foi um filho muito especial. No livro, que demorou trinta e poucos anos para receber o ponto final, histórias de gente simples, a ponto de chamar de Sem-Talher a Rua Saint-Hilaire. A expectativa era tanta que amigos, não raras vezes, cobraram pressa do mineiro. Mas não, o livro foi montado pacientemente, muito pacientemente, como um velho tapete persa. Ou tapete mágico, aquele que voa e pode nos levar na garupa. Contam que Aníbal, quando algo lhe dava na telha, escrevia onde estivesse e da maneira que fosse possível. Pegava um guardanapo ou uma margem de folha de jornal, fazia anotações e as colocava no bolso. À espera de João Ternura, uma charge dizia tudo: um recém-nascido em um berço de vime, não com o rosto de bebê, mas com a cara do autor. Afinal, pela demora, já teria idade para portar o título de eleitor. O que, aliás, seria totalmente inócuo. A obra saiu em 1965, no ano seguinte à morte do escritor, quando o país já vivia um tempo de fezes e traição, como escreveria Walmor Marcelino.

Pássaros de vôo curto

Matéria no Estadão, assinada por Ubiratan Brasil, tratou do ofício de escrever/criar, o que é uma espécie de labirinto do fauno. O escritor Alcione Araújo, que está lançando Pássaros de Vôo Curto (editora Record), depõe sobre questões interessantes. Como nascem os personagens?

– Com a isca inicial, jogo o anzol n'água cheio de expectativas. Quando acho que fisguei uma piaba, assoma um tubarão. (...) Vêm daí a graça e a emoção da aventura de escrever.

Sobre o tempo:

– Sinto-me aniquilado com esse paradoxo: tudo o que sou é constituído de passado, um passado predisposto a se lançar ao futuro. Porém, tudo o que tenho é o presente, intangível e fugidio – mal conclui essa frase, e ela já se amontoa no passado. E o futuro não é uma certeza, é apenas uma possibilidade.

Sobre a mentira:

– Falar em mentira exige de imediato falar de verdade, que é inacessível. Restam-nos as migalhas das versões. Posto de outro modo, vivemos muitas mentiras, que são essenciais. O esquecimento é uma suave mentira que move a vida. (...) A ficção é uma mentira que o meu imaginário quer acreditar porque, insatisfeito na moldura estreita da minha vida pessoal, quero ser muitos outros, adquirir vivências do que não vivi nem viverei. (...) Nascimento e morte são realidades, e há controvérsias sobre a existência de uma essência humana: somos superposições de camadas como cascas de cebola.

Francisco Camargo é jornalista.

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