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Não tive a oportunidade de conhecê-la. Nem poderia. Ainda não tinha nascido. Mas ela virou uma espécie de lenda em Castro. Era a dona Cotinha, uma escrevedora de cartas, como a personagem de Fernanda Montenegro em Central do Brasil (1998), de Walter Salles. Só que dona Cotinha não cobrava para escrever. Bem mais do que uma "intérprete" de sentimentos alheios, virou uma ouvidora pública, porta-voz da comunidade, um verdadeiro ombudsman. Explico: pessoas em dificuldades perante a máquina estatal, trombando com a burocracia, falta de atendimento, e com a própria desinformação, recorriam a ela, Cotinha. Não que fossem como no filme, analfabetas, mas porque não sabiam exatamente a quem recorrer, muito menos como se dirigir às autoridades (Vossa Excelência? Vossa Reverendíssima? Ilmo. Senhor? Ilustríssima Senhora? Vossa Majestade? Vossa Senhoria? Vossa Santidade? Vossa Magnificência? E como seria depois do pronome de tratamento, no decorrer do texto? Dona Cotinha sabia. Aliás, ainda se ensina isso nas escolas? Ou como redigir corretamente uma carta, um bilhete e um ofício?)

Pois dona Cotinha tirava de letra. Ia direto na autoridade competente, ou supostamente competente, para resolver ou encaminhar a questão dos munícipes. E não por poucas vezes endereçou cartas, verdadeiros ofícios, ao presidente da República, na época Getúlio Vargas, e ao interventor no estado, Manoel Ribas, o Maneco Facão.

Graças aos textos lapidares, sempre havia resposta, mesmo que fosse por simples educação – ou respeito a um brasileiro que sabia se impor como cidadão. Tanto do dr. Getúlio como do Maneco Facão.

Dona Cotinha era o e-mail daquele tempo.

Do e-mail dona Cotinha para o e-mail de hoje. O título a seguir, como diria Natureza Morta, é supimpa. O texto, idem. Saiu na seção Leituras & Leitores, do Observatório da Imprensa, 17/3/2009. Desaforos entregues em casa. Autor: Eugênio Bucci, jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP.

Conta ele que começou na profissão em 1984. Na época em que as cartas dos leitores realmente chegavam à Redação. "Algumas eram desaforadas, sem dúvida, mas guardavam um mínimo de urbanidade e elegância. Processávamos, então, os dissabores ali mesmo. Sem alternativas, levávamos o desaforo para casa."

"Agora é diferente. A rede mundial de computadores inventou essa curiosa modalidade de interação: a entrega do desaforo em domicílio. De casa mesmo nós abrimos o e-mail ou os sites para o qual escrevemos profissionalmente e damos de cara com o desrespeito que nos bate na cara. O pior é que, frequentemente, nem sabemos direito quem é que nos bombardeou com a agressividade sem fundamento. Há casos de missivistas que se escondem atrás de nomes fictícios e, aí protegidos, disparam aleivosias para todo lado. Firam a quem ferirem. Os terroristas do verbo ficaram mais desinibidos com o cyberanonimato. Estamos submetidos, sem escudos, às injúrias que nos são entregues em casa na velocidade da luz."

Natureza:

– Como diria dona Cotinha, um tremendo tapa de luva. Se é que ainda há espaço (ou sentido) para isso.

Francisco Camargo é jornalista.

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