• Carregando...

Pouco afeito à leitura, Beronha fechou o Natal irritado. Esperava algo como um engradado de cerveja e, de presente, ganhou um livro. Ho,ho, ho!

– É do meu inimigo secreto...

Nosso anti-herói, que praticamente nunca pegou em uma reles brochura que fosse, diz que espera o Kindle para botar a leitura em dia.

Como não encontra os livros digitais, mesmo "nas boas livrarias do ramo", trata de desovar os livros de papel. Só para garantir a sobrevivência dos sebos, garante. Mas justifica a rebeldia e a insubordinação de outra maneira. E esnoba:

– Depois de Ulysses, de Joyce, passei a ignorar olimpicamente o restante da produção mundial de literatura.

– Leu Ulisses? quer saber o desconcertado Natureza Morta.

– Ulysses. Com Y, posto que no original... Aliás, como dizia aquele grande intelectual brasileiro, sorry, periferia.

E foi em frente. Restou na mansão da Vila Piroquinha o ribombar dos vivas ao neologismo e à libertação do uso da vírgula, "que não só atrapalha a escrita como complica a leitura mais seletiva".

Refeito do susto, mas ainda cambaleante com o quase nocaute, Natureza foi à biblioteca. Lá estava Guimarães Rosa. Ave, Palavra, Livraria José Olympio Editora, segunda edição, 1978, texto definitivo, obra póstuma. Já de aperitivo, à página 7, temos do mestre, alquimista das palavras:

– E ora porém, pois, conforme, os maiores dias vão assim no comum, sem avisações; a não ser quando tudo pode ser conferido, depois.

Natureza vai adiante. Nonada, travessia. À procura da vírgula nem sempre bem comportada, dá um salto no tempo, mas sem perder a qualidade, e cai em Os Espiões. Luis Fernando Verissimo, editora Alfaguara, lançado em dezembro, um ótimo presente para fazer de todo o ano um Natal. Recomenda, com pleno entusiasmo. Verissimo é outro prestidigitador com as palavras.

O livro começa com uma confissão:

– Formei-me em letras e na bebida busco esquecer.

É a aventura – e desventura – de um funcionário de uma pequena editora, encarregado de garimpar possíveis talentos literários, que topa com Ariadne. Ela mesma.

E por aí somos levados a um labirinto fantástico. Na questão de literatura e gramática, as discussões do personagem central com um segundo, ou terceiro, o Dubin, vão longe, desaguando na própria condição humana. Discordam agudamente inclusive quanto à vírgula. Dubin é "oficialista", ou seja, há leis sobre o uso da vírgula que devem ser respeitadas. O outro é "relativista":

– Vírgulas devem ser usadas como confeitos num bolo, espalhadas à vontade, onde fiquem bem e não atrapalhem a degustação.

Afinal, acrescentaria eu, modestamente, a vírgula, a exemplo da crase, não foi inventada para humilhar ninguém. Recorro, no caso, a Otto Lara Rezende, o cara de Retrato na Gaveta" e O Braço Direito, publicados no fim dos anos 1960.

Mas há muito mais em Os Espiões, inclusive uma brevíssima referência ao Paraná (futsal), tudo coroado, acho, pela questão do que ele, terrível, chama de "mero halterofilismo mental" ao enquadrar a criação literária.

Ponto final. Correção! Permi­tindo-se a um pouco de halterofilismo, ponto e vírgula.

Graficamente, são bem mais simpáticos.

Cativantes como, "letra trêmula", a florzinha no lugar do pingo do "i" da Ariadne de Verissimo.

Francisco Camargo é jornalista

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]