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 | Foto: Marcelo Elias/Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Marcelo Elias/Arte: Felipe Lima

Nos últimos meses, a estudante de Arqui­tetura Fernanda Souza tem andado pelas ruas de Curitiba olhando para cima, como se procurasse sinais de chuva ou algum ateliê de costura com preços de ocasião. Mas que nada. Está é em busca de cortiços – uma forma de moradia que nove entre dez curitibanos jurariam ser coisa de outro planeta, dizem que de São Paulo.

Paulistana da Zona Norte que é, Fernanda deu de desconfiar da hipótese de que na civilizada capital paranaense não houvesse um apartamento sequer em que mais de uma família dividisse o banheiro e o tanque, à moda do que acontece em Havana, São Petersburgo ou Fortaleza.

A certeza lhe veio de certa feita, ao ouvir falar de um incêndio numa residência do Centro em que morava gente demais para quarto e sala de menos. Sei não, mas acho que desse dia em diante a moça deu de esticar o pescoço a cada vez que enxergava prédios com roupa pendurada na janela – o que tem de sobra nas Ma­­rechais, na Barão, perto do Passeio, na Riachuelo. Num desses endereços podia estar o que buscava. Estava.

Cedo, percebeu que na maioria dos lugares suspeitos não havia cadeiras na calçada ou na fachada escrito em cima "que é um lar", mas placas de "penseonato", a exemplo do hotel de alta circularidade transformado em locação do filme Estômago, do curitibano Marcos Jorge.

Foi assim que Fernanda matou a charada. Por aqui, cortiço segue à risca a expressão "casa de pensão", popular nos tempos da vovó. Não se amofinou. Bateu palmas e foi logo subindo as escadinhas, como se fosse pedir uma xícara de açúcar para dona Danuta. O que achou da porta para dentro, caros amigos, é a tal da vida que ninguém vê.

Os estimados 130 cortiços da capital não se parecem ao Costão do Santinho, claro. Mas não é preciso um toró de lágrimas. Mesmo sublocados, superlotados, caindo aos pedaços e com encanamentos angolanos, essas estalagens têm algo a dizer sobre a Curitiba que mora no Centro.

"Nunca vi tantos garçons juntos", brinca a pesquisadora, sobre o rosário de boas histórias que recolheu em suas andanças, nas quais proseou com toda sorte de solitários urbanos, incluindo um advogado, um professor e um viúvo à espera da morte da sogra: vai herdar a casa dela.

É fato que em uma das suas empreitadas, nos paralelepípedos da Saldanha Marinho, Fernanda levou corridão de uma bufona, cismada com aquela visitante interessadíssima em saber do aluguel. Que diabos? A propósito, seis metros quadrados no cortiço podem custar R$ 450 mês – uma fábula.

De resto, a pesquisadora tem desfrutado da hospitalidade de estranhos e hoje desenvolve um estudo sobre moradia em prédios avariados. Graças à curiosidade, conheceu pessoas com as quais jamais cruzaria nos corredores da UFPR – uma gente que vive sem normas na cidade que mais idolatra regras em todo o Hemisfério Sul. Uma proeza.

Cá entre nós, o assunto "habitação de interesse social" – termo usado nos círculos ilustrados – causa urticárias no poder público e nos senhorios que não dão bolas para a penúria de seus inquilinos. Mas para Fernanda serviu de inspiração. Andava meio desacorçoada com a arquitetura. Hoje, sabe o que quer da profissão: fazer dos velhos centros urbanos degradados espaços com todo tipo de gente circulando o tempo todo. Não duvide, acontece em Ville Auch, Gers, Paris. E em Porto Alegre.

Ah, ela tem uma planta antiga na mão e um projeto na cabeça. Vai apresentá-la à orientadora de nome bonito – Madianita, de quem já recebeu uma dedicatória delicada, escrita a lápis e com letra cursiva. Aprovada. Não é sempre, afinal, que uma douta abre portas batendo palmas.

Já sabe – se ouvir algo parecido na frente de seu cortiço, é ela.

José Carlos Fernandes é jornalista.

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