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 | Foto: Marcelo Elias / Arte: Marcos Tavares
| Foto: Foto: Marcelo Elias / Arte: Marcos Tavares

Quando menino, fui ao ca­samento de um tio em Umuarama. De tão bom, acho que não voltei para casa até agora. Na minha memória, a cidade cheira a café moído na hora, adoçado com açú­­car cristal. Lembro meu es­­panto ao saber da quantidade de galinhas e porcos abatidos para o enlace, praticamente um atentado ao reino animal. E ainda me vejo andando de carroça pela terra vermelha, achando bem mais divertido que o tobogã do Atlé­­tico. "As Umua­­rama" eram só felicidade.

Da festa pouco me recordo. Até percebi as margaridinhas na grinalda de tia Ivete, mas os olhos não desgrudavam eram de Alzira, Martinho e Porfírio, os irmãos surdos da noiva. Foram os primeiros que vi na vida.

Feito astros da pantomima, faziam desenhos no ar para traduzir aos forasteiros verbos ru­­rais como capinar e pelejar. Seus troncos se moviam como se fossem barqueiros do Volga, afrontando, com gestos expressos e dedos ligeiros, os tímidos de braços cruzados vindos da capital. O saldo é que despertavam nos outros ganas de experimentar o que diziam. Capinar e pelejar, segundo os surdos, devia ser tão bom quanto tomar banho de rio e montar a cavalo.

Só sei que eu, que nunca ha­­via ido ao teatro, nem tinha idade para saraus, entendi o significado de mais dois verbos, como dançar e interpretar, implícitos naquelas libras caboclas. Muitos anos depois, quase morri de té­­dio ao ler O Corpo Fala, de Pierre Weil e Roland Tompakow. Alzira e os seus manos, uma vez, já tinham batido o texto para mim. Melhor que eles, só Denise Stoklos.

Semana passada, tive novo encontro marcado com os surdos. Foi na Paróquia São Francis­­co de Paula, onde o padre Wilson Czaia, 40 anos, deficiente auditivo, celebra para os que não ou­­vem e simpatizantes. Como dantes, ainda não voltei para casa. E se me perguntarem o que fazer em Curitiba num sábado à tarde, direi: "Vá à missa do Czaia".

Para quem não sabe, a comunidade dos deficientes é uma "igreja pessoal", termo canônico para denominar uma paróquia que funciona dentro de outra paróquia. Parece um consulado. Chama-se Nossa Senhora da Ternura, nome pelo qual ficou conhecido o ícone da Virgem de Vladimir ou Nossa Senhora do Doce Beijo, cultuada em terras russas. A escolha é óbvia. "As pessoas especiais precisam de carinho", diz o sacerdote, encenando o acalanto.

Já tenho uma teoria. Se não soubéssemos falar nada de nada – feito os protagonistas de Enigma Kasper Hauser ou O mistério de Annie Sullivan – sairíamos daquela cerimônia capacitados para nos comunicar com qualquer um. À revelia de a linguagem dos sinais ser diferente em cada idioma, com os gestos básicos dos surdos poderíamos bater um plá com zulus e dinamarqueses, com indonésios e kunas. A Ternura é o epicentro do globo.

Tem mais. Do "em nome do Pai" ao "vamos em paz..." é como se experimentássemos uma confusão dos sentidos. Sei não, mas os ouvidos ficam moucos diante do gestual desabrido dos fiéis surdos, a dizer com mãos elevadas e dedos tilintantes loas como "a Ele seja a glória, aleluia, amém".

Quem traduzia o canto em libras era Andréia Kohut. Seus ges­­tos são de uma vestal, coreografando arcos e conchas com o pai de todos, o mata-piolho, fu­­ra-bolo, seu vizinho e o mindinho. Se é difícil imaginar, pense em como você rezaria um Pai-Nosso sem dizer palavra? Ou como faria para dizer "pão repartido"? Experimente.

É delicioso ver padre Wilson passar a mão sobre a barriga, pândego, com ares de saciado pelo trigo. Sorrisos arranham aos céus. Corpos piedosos fazem iê-iê-iê. Não falo libras. Mas saí de lá entendendo que assim co­­mo carpir e pelejar, celebrar é dos deuses. Era o que estava escrito nos rostos que eu vi.

Agradecimento ao psicólogo Aldemar Balbino da Costa, que atende seus pacientes em libras, pela tradução da entrevista com o padre.

José Carlos Fernandes é jornalista.

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