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Difícil não concordar com Pedro Almodóvar, no que diz sobre as mulheres. "O mundo feminino é mais rico", repete o cineasta, a cada novo filme. Salvo engano, apenas uma, duas vezes colocou os homens no centro da cena, no incrível Fale com ela e no medonho Os amantes passageiros.

De minha parte, fiz a lição de casa, muito antes de saber da existência de Almodóvar – uma época, aliás, bem sombria, rsss. Adoro escutar conversa de mulher. São narradoras natas. Não à toa, a proporção de grandes atrizes e grandes cantoras é bem maior que a de grandes atores e grandes cantores. Discorda? Pois faça as contas.

Fico pasmo quando elas, as gurias, fazem de uma simples meia-calça desfiada uma saga dotada de lances que empalidecem até a travessia do Mar Vermelho. E a mulherada também é mais engraçada. Só que às escondidas. Essa virtude lhes é negada, sob pena de virarem titias. Basta lembrar: quantas vezes não ouvimos a máxima "mulher engraçada não casa"?

O assunto foi tratado com maestria pelo polemista britânico Christopher Hitchens no ensaio Homem quer mulher como plateia. Segundo ele, os machos teriam tomado para si a prerrogativa de serem divertidos, com dois objetivos: desviar atenção da própria feiura e, por tabela, parecerem mais inteligentes e darem o bote. Woody Allen total. Lembro, na hora, da voluptuosa Jessica Rabbit: "Oh, ele me faz rir..."

Perdoem o prelúdio. Eu só queria dizer que em tantos anos ouvindo conversa de mulher, perdi a noção das vezes em que elas falaram da "obra". É verdadeira obsessão. Dizem coisas do gênero: "Menina, passei perto da obra e não ouvi nenhum ‘eh, lá em casa’. Tô acabada..."

Como tantos outros milhares de homens devem ter observado a mesma coisa, lanço aqui mais uma hipótese, em memória do Hitchens: fomos induzidos a erro. Tolinhos, juramos de pés juntos que mulher gosta de levar cantada "por causa da obra". Pior. Achamos que estamos sendo engraçados, logo inteligentes, atraindo a presa com nossas piadinhas de peões, só que não. Pelo menos "não" para quem acredita em pesquisas.

Levantamento recém-publicado da jornalista Karin Hueck, feito com 8 mil mulheres, mostra que 99,6% das entrevistadas passaram constrangimento na rua ao ouvir "fiu-fiu" e variações para o tema. Não é tudo: 85% delas levaram a célebre passada de mão, sendo 88% na bunda. Mais da metade não achou simpático coisíssima nenhuma aquele toque na cintura, tipo "tirando para a valsa". Mais: 64% delas são assediadas no transporte público. Eles chamam isso de "casquinha".

Demorei uma vida para entender a importância desse assunto. Uma irmã minha dizia se sentir agredida com cantadas no ponto do ônibus. Não dava bola. Limitei-me a achar uma piada os caras que diminuem a marcha, abrem a janela bem dispostos e tal, "às 7 da matina". Muito tempo depois, vi o show "Cantada", da Adriana Calcanhotto. A artista até contou no palco uma que recebeu, ainda meninota. Ela, muito pálida. Ele, muito negro, seguiu-a e disse: "E aí, vamos botar o preto no branco?" O Guaíra veio abaixo.

No começo deste ano, a "cantada" passou raspando por mim, de novo. Um grupo de alunas fez um projeto a respeito. Escreveram os impropérios ouvidos aqui e ali, deram para os rapazes da sala lerem, e filmaram. Na hora da projeção, a turma ficou muda. Passado o impacto, a catarse. Elas falaram da humilhação de serem encoxadas no biarticulado. Naquele momento, não eram narradoras almodovarianas, nem gurias folgazãs com medo de não casar. Eram mulheres sem graça.

Depois daquele dia, comecei a prestar atenção ao que acontece na rua. É a investigação mais moleza do planeta – pode ser feita no sinaleiro. Ponha a orelha em pé. As frases que muitos homens dizem a desconhecidas são impublicáveis. Pior. Depois da dita cantada, não raro o cabra segue atrás, dando a elas, como troco, o prêmio da insegurança. Ah, na pesquisa, quase 70% das entrevistadas disseram ter sofrido agressões verbais ao se defenderem.

Longe de mim atentar contra a brasileiríssima arte da cantada, mas andamos perdendo a mão. É o que elas dizem. E não tem nada mais gostoso do que ouvi-las. Juro.

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