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 | Foto: Antônio More/GP Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Antônio More/GP Arte: Felipe Lima

Lembro bem da primeira vez em que vi Yolanda. Foi no hall da Escola de Música e Belas Artes e levei um cutucão: "É ela", disse entredentes um amigo diante da morena bem maquiada e cara de poucos amigos. Ela tinha seus 48 anos e era uma das lendas da escola, do naipe de dona Zulmira – a zeladora que morava nos fundos da faculdade –, e do fantasma de Freyes­­­­leben, nunca visto, mas cujos passos jurávamos ouvir no assoalho da velha sede da Rua Emiliano Perneta.

Na juventude, Yolanda fora modelo da Belas, não a primeira, mas com certeza a mais famosa. "Era linda. E uma fera", informavam os veteranos aos calouros, o que bastava para que a respeitássemos pelos próximos quatro anos como se fosse a encarnação de Kiki de Montparnasse.

O que se dizia no "esfria bunda", como chamávamos a gélida cantina da Emiliano, é que deixou de posar logo que lhe nasceu o filho Bernardo. Passada a dieta, voltou como telefonista, cargo ao qual se viu alçada graças a um de seus atributos – a voz de sereia, comprovada em backing vocals nos programas de auditório no Canal 12, do outro lado da rua.

Reencontrei Yolanda há pouco, depois de quase implorar sobre seu paradeiro. Sem notícias dela, a Belas me parecia cada vez mais uma página virada. Zulmira morreu faz pouco. O fantasma de Freyesleben não se mudou para a sede nova – na Rua Comendador Macedo. Só faltava a modelo ter mesmo tomado chá de sumiço.

Mas ao vê-la abrir a porta do apartamento em que vive, no Batel, foi como sentir de novo o cheiro da terebentina no sótão do Viaro. Yolanda, aos 67 não denunciados, está uma guria. É certo que passou dos 59 para 94 quilos, mas os cabelos brancos lhe caem bem e a voz está um veludo. "Avisa lá, moço, que se me chamarem para posar eu vou", diverte-se, sem meter medo em ninguém. "Eu, brava?", desdenha, depois de cantar feito um canário "A namorada que sonhei", doce toada do Nílton César. É de gamar.

A história de Yolanda com as artes teria começado em 1968 – o tal ano que não terminou – numa lanchonete da Galeria Lustosa. Recém-saída do Lar das Meninas Hermínia Lupion, ela viu se aproximar um "alemão" de quase 70 anos, todo dedos, para lhe dizer que tinha o colo espetacular e que gostaria de desenhá-la, "a cem cruzeiros a hora, ou coisa assim."

Por sorte, ela não botou o sujeito para correr. O "alemão" era o pintor Waldemar Kurt Freyesleben, cuja carreira de fantasma seria iniciada apenas em 1970. Graças a ele, num estalar de dedos Yolanda saiu de um sanduíche de queijo e presunto para um passeio no Olimpo. Na Belas, foi recebida por Fernando Calderari – um dos nossos craques; posou para De Bona, que dispensa apresentações; debutou numa aula do revolucionário João Osório Brzezinski. Recorda-se bem de Guido Viaro, como não. E "daquele menino", o Juarez Machado.

A primeira vez – "um nervo". Mostrou o colo que encantou Freyesleben e os seios. Só. "Havia o preconceito", lembra a mulher que nunca contou aos pais a origem dos trocados; e que teve de driblar a ciumeira do namorado, Bernardo Sniecikowski, com quem viveria 40 anos.

Logo veio o nu total e uma experiência que Yolanda jamais poderá esquecer: nunca tinha se achado bonita ou importante. De repente, a cada dia, virava personagem de telas e carvões. Infelizmente, um incêndio no Edifício Sertaneja, pensão onde ela morava, transformou em cinzas o que poderia ser o Museu Yolanda Barbosa de Souza.

Já esquecimento, necas. Eu que cheguei à Belas tanto tempo depois ainda ouvi loas à brasileiríssima Yolanda, dona das curvas da Estrada de Santos. É um de seus orgulhos. Nunca foi de regimes. E quando lhe disseram que os volumes ganhos desagradariam inclusive Viaro – um devoto de índices corporais elevados – respondeu, na lata, haver gosto para todos os tipos. Ninguém deu pio.

Até hoje, Yolanda não dispensa um regabofe no Maneco, na Praça Osório. Em casa, idem, é um bom garfo. Seus cardápios fariam as tops subirem pelas paredes: rabada, feijão com costelinha e bisteca. No mais, é uma aposentada bem comportada. É de missa e reza na catedral. Tem pedido pelo Japão e "por aquele turco, o Kadafi". Segunda consta, não clamou perdão pelas tardes nuas: fez sua parte mostrando o que Deus lhe deu.

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