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 | Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

O administrador de empresas Igo Martini, 44 anos, não tem carteira de motorista – nem pretende arranjar uma antes do Apocalipse. Vai ver que por isso se tornou o primeiro secretário extraordinário de Direitos Humanos do município de Curitiba, posto que ocupa faz pouco mais de um ano, com méritos de um Dalai Lama. Tinha de ser ele. Nada a ver? Tudo a ver. Como não dirige, Igo caminha ao léu, pratica “contemplação urbana” e vê gente todo dia, toda hora, todo instante – pessoas são seu business, em especial as que estão no fim da fila.

Verdade seja dita, o primeiro encontro entre Igo e a humanidade não se deu pelos pés – deu-se pela dor. De família modesta, em Goioerê, no Noroeste do Paraná, cedo desfrutou doses nada homeopáticas de uma prática hoje conhecida como bullying. Dizia-se que era para os meninos “aprenderem a se defender”. Pois é. Teve três respostas a dar – apontar uma metralhadora cheia de mágoas; pagar com a mesma moeda; fazer do fel uma gentileza. Ficou com a terceira opção. Virou ativista. Pisou no mais minado dos campos: o da comunidade LGBT, aquela, que nos dizeres do documentarista Michael Moore, é a última dentre as últimas.

Fez bonito. À frente da ONG Cepac, um dos braços do grupo Dignidade, dedicou um bom tempo de sua vida a soropositivos – uns tantos em vias de se atirar pela janela – e a apertar parafusos na cabeça de professores que não sabiam como lidar com alunos gays e transexuais. Sua diplomacia para desarmar a artilharia pesada dos tiranos, intolerantes e demais representantes do mundo animal acabou por catapultá-lo para bem longe da Goioerê natal e da cidade adotada – Curitiba. Mudou-se para Brasília. Contra todos os prognósticos, adorou.

Quando Igo conta de suas guerras, nos sentimos tolos cachorrinhos de estimação

Por uns tempos esteve locado na Secretaria Nacional de Direitos Humanos, mas cumpria expediente onde os deveres de ofício o chamassem – não raro no meio de uma tribo perdida na selva amazônica. Para ele, a vida se divide em antes e depois dessa experiência. Depois do estágio no Planalto Central, seu mundo alargou: tornou-se fluente em pelo menos 30 idiomas explosivos, da reforma agrária à violência contra as mulheres, passando pela redução de danos. Fez planos de proteção para jornalistas jurados de morte. Teve parte com pescadores e extrativistas. Quando conta de suas guerras, nos sentimos tolos cachorrinhos de estimação. Arrisque um dedo de prosa com ele – equivale a um passeio no tapete mágico.

Desde sua volta ao Sul, Igo Martini, é bom lembrar, anda entregue à “insurgência intermitente da conturbada agenda municipal”. Tem visto coisas que até Deus duvida. As mensagens dos descontentes são o caso. Azucrinam-lhe o juízo: “E os direitos dos brancos? Dos natos? Dos heterossexuais?”, berram os que lhe assaltam, confirmando a profecia sinistra do filósofo britânico John Gray – “o futuro não será melhor que o passado. Resta arrumar um jeito de viver junto”. É o que tem feito.

As demandas são tantas que caminha de manhã à noite, sem pausa para o xixi. Junta-se, por exemplo, aos servidores da Fundação de Ação Social que saem madrugada adentro para convencer a população de rua a pernoitar nas casas de passagem. Sobretudo, tornou-se embaixador dos nossos 10 mil refugiados estrangeiros, uma tarefa brava. Lideranças da imigração têm linha direta com Igo. O telefone chora: “Oi, Laurete”, “olá, Timothy”, “olá, Feras Al-Ahham”.

Haitianos, nigerianos e iranianos, para citar três grupos, veem no militante uma espécie de bastião, ao qual recorrem neste momento em que transitam pela barca do inferno. Querem entronizá-lo. Pudera. Desde a chegada, ele entendeu que tinha de estar a postos a cada vez que um dos ônibus com haitianos desembarca na cidade, vindo do Acre. O mesmo vale para os demais. “Souberam dos sul-africanos?”, pergunta à turma da secretaria.

As listinhas com os nomes complicados como Dimel, Desimond ou Demostherne caem qual raios no seu computador. Mal se avia com esses estrangeiros, enreda-se com os sírios, seus diplomas não reconhecidos no Brasil e os quiproquós que enfrentam dentro da própria comunidade árabe. Quem vê de fora não diz, mas Igo Martini e sua minúscula equipe estão administrando o Oriente Médio, a África e o Caribe, regiões que hoje fazem fronteira com a Rua XV.

Equipe, claro. Além de Igo, a turma é formada pelo jovem antropólogo João Vitor Fontanelli e pelo veterano agente cultural Jorge Rangel Filho. Só – um exército de Brancaleone. Mas não se iluda – no fundo eles são muitos. Há simpatizantes dentre os 40 mil funcionários da prefeitura, cada dia mais. Se “direitos humanos” não é de todo palavra mágica, está perto de ser. “Tem quem me diga que lutava por isso, mas não lembrava mais o nome que tinha”, conta ele. Está bacana. A paz é possível em CWB.

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