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 | Foto: Cezar Machado / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Cezar Machado / Arte: Felipe Lima

Permitam-me generalizar, mas acho que todo mundo sonhou em tocar piano. Por esse raciocínio, só não temos um pianista em cada esquina porque é um instrumento caro, que ocupa muito espaço na sala. As escolas são poucas e onerosas e a propaganda do contra é enorme – de modo que uns poucos eleitos chegam lá.

Diz-se que é preciso ter ouvido bom, alcançar uma oitava com os dedos e estudar nove horas todo dia, sem garantia de, pelo menos, conseguir ser a estrela da matinê. Além do mais, paira no imaginário a sombra da temida professora de piano – enérgica e ereta como uma nobre da casa de Schleswig-Holstein. Seus nomes aristocráticos – como Eudóxia de Barros – deixam as pernas bambas. Beneficiadas por ouvidos cristalinos, imagino, não suportam feri-los com aprendizes rastaqueras. Suponho-as horrorizadas, fechando a tampa sobre nossas mãos. Como castigo – solfejos.

Nesse quesito, tive sorte. Minha professora de piano se chamava Fátima Cristofoletti, era a moça mais linda do local onde eu vivia, em Rio Claro (SP), e fez um bem danado à cultura ao me dizer, sem rodeios: "Desista". Por um tempo, acreditei que tocaria Brasileirinho e Tico-tico no fubá com a habilidade de quem empina pipas. Até que captei a mensagem. Como diz um amigo, às vezes a gente gosta da música, mas a música não gosta da gente. Meu caso.

O misto de temor e fascínio pela professora de piano, contudo, não passou. Daí o tremelique ao marcar um encontro com a pianista Abigail Silva (foto), uma das tops do ramo. Tem 81 anos – mas parece mentira – e nasceu no interior de São Paulo, estado cujas cidades, para merecerem esse nome, no passado, tinham de ostentar uma filarmônica, um coreto e um conservatório. Havia o prefeito, o padre, o regente... e a pianista.

Na cidade da minha adolescência, ela se chamava Heloísa Lemenhe Marasca, e parecia saída de um conto de Orígenes Lessa. Cara de pau, convidei-a para tocar Odeon, de Ernesto Nazareth, na minha formatura do colegial – ela topou. Pois Abigail lembra Heloísa. Nasceu em uma família de músicos. Seu primeiro piano era um Rosnish e nele se sentou, pela primeira vez, aos 7 anos. Nunca mais saiu dali. Crescida, em 1954, fundou seu próprio conservatório e teve tantos aprendizes que desistiu de somá-los. Ah, ama Dilermando Reis, Zequinha de Abreu e Waldir Azevedo tanto quanto Beethoven.

O ponto fora da curva na trajetória de Abigail é que, em vez de ser solista, preferiu tocar junto com os outros. Aprendeu nas igrejas às quais confessou – metodista, presbiteriana, batista –, mas sobretudo com o pai, o fotógrafo e violinista Aristides da Silva. Faziam duetos, trios, o diabo. Não por menos ela se atirou com sede ao método de "piano em grupo", trazido ao Brasil pela freira norte-americana Marion Verhaalen e pelo catedrático de Columbia Robert Pace. Foi nos anos 1970. E mudou tudo.

Se Abigail não era, digamos, convencional, depois de Marion e Pace se distanciou de vez da clássica imagem da madame Souzatska. "Era tudo que eu queria." Seu negócio é sala cheia. Estuda-se a partitura, mas também o improviso, variações e a harmonia – sem dor. Faz solfejos, brincando. Com ela, não tem caso perdido. O aprendiz sai da primeira aula tocando uma peça – não à toa se chama Alegria. Para um aluno entrado em anos, à beira de desistir, decretou: "Faça do seu jeito, está lindo". Ele tocou Azul da cor do mar, de Tim Maia. Bravo!

Em Curitiba desde 1982, chegou ao acaso, para um aparte com a respeitada Henriqueta Garcez Duarte. Ficou. Mora no Mossunguê, de frente a uma pracinha – "na qual os pássaros cantam o que bem entendem". Dá aulas particulares – vagas, só em 2050. À tarde, manda-se para o Conservatório de MPB, no Centro, para oficinas de... "piano em grupo". Ocupa a Sala Hermeto Pascoal, vizinha das salas Chiquinha Gonzaga e Noel Rosa. À noite, dá cabo à coleção Genealogia da música brasileira, com partituras de lundus, maxixes, choros e canções...

"Enquanto não acabar, não sossego", avisa, com uma banana para a idade avançada. Esse trabalho é seu lado José Ramos Tinhorão e Inezita Barroso. Para fazer as transposições para o piano, não usa mais o velho Rosnish, mas um piano digital, com capacidade para zilhões de arquivos. Faz urras. Se sobra um tempinho, toca de tudo, "até Zeca Baleiro". E fala com a turma no Face. É que, quando está sozinha, gosta de estar com os outros. Essa é sua música.

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