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 | Foto: Arquivo Gazeta do Povo / Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Foto: Arquivo Gazeta do Povo / Ilustração: Felipe Lima

Quem quer que tenha sido piá nas décadas de 1950 e 1960 sabia de cor o percurso do Sputnik e da Apolo 11. Empolgava-se ao ouvir falar de Yuri Gagarin. Derramava uma lágrima ao lembrar de Laika, a cadela perdida no espaço. Existir era sinônimo de acompanhar o bangue-bangue entre russos e americanos para ver quem ia “papar” a Lua – e tinha de torcer para um dos dois. Em Curitiba, além de todos esses capítulos da novela espacial, havia o tal do plus: o programa de televisão Entre nuvens e estrelas, criado pelos irmãos Ayrton e Átila Borges Júnior.

Tudo bem – o Entre nuvens... não se ocupava propriamente da conquista espacial, mas estava no clima. Seu assunto – a aviação, no que foi um desbravador em tempos de tevê a lenha. Testemunhos garantem: era tão gostoso quanto colecionar figurinhas sobre a Nasa ou sonhar com as asas da Panair. Além do mais, o programa ajudava a fazer bonito. Ao assisti-lo, qualquer um conseguia explicar como aquela lata toda não despencava lá de cima – ou pelo menos quase nunca.

Átila recebe as últimas informações como se visse um táxi passando numa noite de chuva

Para habilitar os telespectadores em física e aeronáutica aplicada, os Borges precisavam rebolar. Não havia os préstimos do videoteipe nem as maravilhas da computação gráfica. Um episódio ficou famoso – o do teco-teco conduzido pela Rua Emiliano Perneta e desmontado para entrar nos estúdios do Canal 12 – tudo para ilustrar o programa. Valeu cada parafuso espanado: o Entre nuvens e estrelas fazia tanto sucesso que ganhou uma versão semanal na Gazeta do Povo, para delírio dos colecionadores, que à época brotavam nos pés de couve.

As versões impressa e televisionada do Entre nuvens... tiveram vida longa – dos idos de 60 até meados da década de 80. Não só. Caso raro em produtos de mídia, o projeto deu origem a um museu, nada menos do que um dos poucos do gênero em toda a América Latina. Explico.

Além de entusiastas com o caixote de válvulas que mexeu com o juízo das pessoas, os irmãos Borges levavam ao extremo seu interesse por aeronaves. O gosto vinha de criança, quando Átila, aos 11 anos, queria ser grande e brindou a Lapa com a revista O guri. É fácil adivinhar do que tratava.

Pois o guri virou capitão da Aeronáutica, sempre fiel a sua tarefa – guardar tudo que dissesse respeito a sua paixão. De paraquedas usados na Segunda Guerra a relíquias de Santos Dumont, para citar duas traquitanas que os manos mostravam a seu público. Até que tempos obscuros tomaram a Terra de assalto [música, maestro]. Não havia mais lugar para atrações como o Entre nuvens... Xuxa aterrissou de chiquinhas a bordo de uma nave colorida.

O acervo reunido por Átila Borges chegou a 10 mil itens. Ganhou fama e, de 1996 a 2001, um espaço no Aeroporto Afonso Pena. A essa altura, havia uma Santíssima Trindade para apresentá-lo aos visitantes – o militar, sua mulher Mareli e a filha do casal, Marilise. Estariam até hoje na lida não fosse o destino, esse caprichoso.

Marilise morreu súbito em 2000. Um ano depois, o museu acabou sendo fechado. Átila decidiu doar todas as peças. Não faltaram candidatos – incluindo o comandante Rolim, da TAM. O casal balançou, mas teimou que o acervo tinha de ficar no Cabo Canaveral do Entre nuvens..., Curitiba. Naquele mesmo ano, numa cerimônia pálida como um soneto, o colecionador repassou seu tesouro para a Universidade Tuiuti. “Equivaleu a perder um segundo filho”, costuma dizer, sobre a doação, que foi seguida de pane em todas as turbinas.

Em pouco tempo, morreu o coronel Sydnei Lima Santos, reitor da Tuiuti e entusiasta do projeto; o nome Entre nuvens e estrelas acabou trocado por outro; e o acervo encaminhado para férias sem vencimento no almoxarifado. Um processo judicial abalou as relações entre Átila e a Tuiuti. A cada grita, abria-se uma nova rodada de negociações, seguida de uma futura data de abertura do museu. Era para ter sido em maio de 2014. Agora está prometida para o início de junho, com a garantia de que o nome será mantido. Tomara.

Átila recebe as últimas informações como se visse um táxi passando numa noite de chuva – com impotência. Preocupa. A morte da filha e o empacotamento das peças o puseram doente. Aos 79 anos, soma 15 intervenções cirúrgicas, várias, garante, frutos de tanta desilusão.

Para quem não o conheceu, algumas pílulas. Ao falar do Entre nuvens... costumava ganhar a feição de um menino sapateando ao som Fly me to the moon. Um de seus hábitos, presentear a quaisquer com alguma das nove tabelas móveis que produziu para a Encyclopaedia Brittanica. Quando não, distribuía objetos encontrados em suas expedições pelos mercados de pulgas. Ganhei dele envelopes de cartas carimbadas pela censura na era Vargas; e uma edição de O céu desabou, de Arthur Weingarthen, sobre o avião que se chocou contra o Empire State em 1945. Um barato.

Dia desses, mandou para a redação o boneco de uma biografia ilustrada de Santos Dumont. Chama-se Quando o homem voou pela primeira vez, de verdade? Impossível não pedir aos deuses da aviação que Átila consiga lançar o livro. Que o faça no museu que formou, debaixo de um céu de brigadeiro, com as bênçãos da Esquadrilha da Fumaça.

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