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 | Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Sabe aquela história de “a alma das ruas”? Pois faz sentido. Até pode ser conversa de quem leu muita crônica do João do Rio e ficou com minhocas na cabeça, mas que rua tem aura, tem. Vias, avenidas, alamedas, bulevares... são formados por camadas e camadas de memórias de gente – uma verdadeira torta Marta Rocha, a entrar pelos olhos e pelo nariz. Como diz a filósofa Olgária Matos, da USP, “uma rua é o lugar onde houve uma guerra, onde um amor acabou”. Tem quem não dê pelotas a esse rosário, mas sugiro sempre perguntar a pretensos amores ou amigos: “Qual é a tua rua?” A depender da resposta, fuja.

A rua do ator e publicitário Sinval Martins é a Barão do Rio Branco e cercanias. Circulou por ali nos seus anos incríveis, os 50 e os 60, quando as emissoras e os jornais que ferviam a capital em fogo alto estavam plantados na região. Ponha na lista a Rádio Clube (B2), a Tingui, a Guairacá, o Diário do Paraná, o Estado do Paraná, a Gazeta do Povo – tudo na vizinhança. Sem falar nos bares Palácio da vida e tudo o mais que formava o pacote “Era do Rádio”.

Sinval lembra de ser pouco mais do que um guri e ter de sair chispando da B2 para, algumas quadras abaixo, no Canal 6, travestir-se do personagem Barnabino, um velhote da série É proibido sonhar. Jornada dupla. Tinha mesmo de seguir em disparada – porque o tempo era curto e porque as “macacas de auditório”, como eram chamadas as meninas que gritavam por seus ídolos nos estúdios, poderiam alcançá-lo, parando o Centro, como lhe aconteceu uma vez.

A HM inovou ao bolar eventos que viravam a cidade de canelas para o ar

Era um “pão” – dê uma emparedada em sua avó e ela conta tudo –, mas precisava de um soldo que lhe pagasse o bonde. No que o veterano da radiodifusão no Paraná Ubiratan Lustosa o acudiu, arrumando-lhe um emprego no Hermes Macedo, a HM. Coisa modesta, pro gasto. Além do mais, ficava quase ao lado da B2 – precisamente na esquina da Barão com a Rua José Loureiro. Era para ser um bico de três meses, como anotador de vendas. O ano, 1967. Sinval ficou 23 primaveras no posto, saindo dali para entrar para a história da publicidade.

A turma que cheira a leite pode não saber, mas a HM foi uma dessas potências sem fronteiras do estado. Em tempos de glória, chegou a ter 250 lojas, 15 mil funcionários, 17 empresas, 500 mil metros de área construída – um pequeno país. E um ator de sucesso nas suas fileiras criativas, justo Sinval Martins, partner de Ary Fontoura e Odelair Rodrigues. Para além de bordões como “pneu carecou, HM trocou”, a rede de varejo inovou ao bolar eventos que viravam a cidade de canelas para o ar. No Natal, por exemplo.

Muito antes de as janelinhas do Palácio Avenida se abrirem com os pequenos cantores devidamente pendurados, a HM enfeitou seus 31 janelões espetaculares para fazer o “Presépio Encantado”. Criava túneis na lojona da “Barão”, gastava uma energia elétrica lascada e punha uma centena de personagens do presépio para mexer a cabeça e as mãozinhas. Não é balela: até os anos 1990, quando a HM imperou, 100 mil curitibanos saíam da toca a cada dezembro para ver, digamos, o nascimento de Jesus by Sinval Martins e equipe.

É passado – claro. O endereço onde as fãzocas juraram aos berros amor eterno a Francisco Alves ou Sílvio Caldas, para citar dois; e onde a HM abasteceu gerações com tudo para o lar, carrega hoje uma placa de aluguel. O prédio – do século 19 e uma unidade de interesse de preservação do município – está caidaço e faz pouco foi a leilão. Podia ter o mesmo destino da chefatura de polícia , logo em frente, da qual só sobraram a fachada e as vigas. Mas anda numa maré de sorte.

A esquina da “Barão” ganhou outro dono. Seguindo a onda dos novos proprietários de imóveis históricos do Centro, ele não quer se identificar. Reza na cartilha do dono do Edifício Eduardo VII e o da Casa Hauer. A vantagem é que o investidor misterioso anda com comichão de tirar a velha rua do prejuízo. Chamou para tanto o profissional do ramo imobiliário Ricardo Reis, 48 anos, ele mesmo um aficionado pela “Barão”.

Foi ali, no número 157, nos anos 1910, que seu bisavô, o caixeiro-viajante português Pompeo Reis, abriu, segundo consta, a primeira livraria da cidade. O estabelecimento o vento levou, mas os Reis cuidam do prédio até hoje, com mesuras. O convite para administrar o restauro e o aluguel do edifício da HM – com 6,5 mil metros quadrados de nostalgia, cupins e poeira – foi quase recebido às lágrimas. Não tardou para que surgisse um combinado entre os dois camaradas: fazer alguma coisa para tirar da uruca aquela que foi a rua mais importante da capital.

Os janelões foram reabertos; o piso carcomido dançou. O octogenário Sinval Martins teve de se equilibrar nas vigas de pinheiro ao receber de Ricardo Reis o salvo conduto para pisar no local, em visita. Parecia um menino. Em tempo – é da índole de quem tem memória de rua querer voltar, passar a mão nas paredes, respirar fundo e desenvolver incontinência verbal. A conversa de Reis (que tem saudades do que não viveu) e Martins (que voltaria no tempo um minuto que fosse) foi bem temperada. Por um instante, diante de prosa tão viva, pensei ter visto sombras na parede. Deve ser efeito colateral de um remédio para dores cervicais. Ou não.

  • O ator e publicitário Sinval Martins num dos janelões do prédio do Centro que abrigou parte da “Era do Rádio” e um capítulo importante do comércio local - a loja HM.
  • Nos anos 1950-1960, o mineiro Sinval Martins trabalhou na mítica B2, na Rua Barão do Rio Branco. Por indicação do veterano Ubiratan Lustosa, conseguiu emprego na HM, onde se tornou um publicitário reconhecido. Andar de cima abrigada setor de móveis. E antes disso, foi auditório de rádio.
  • Piso tomado pelo cupim foi retirado. Os dois prédios de esquina que formavam a HM somam 6,5 mil metros quadrados.
  • Sinval e a placa “Aluga-se”, fixada por Ricardo Reis. Ideia de empresário do ramo imobiliário é retirar a “Barão” das sombras.
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